Com câmera instalada no capacete, australiano de 28 anos transmite massacre pela internet antes de ser preso; identificado pela polícia neozelandesa como Brenton Tarrant, ele deixou um manifesto racista
Com uma câmera instalada em seu capacete, um atirador transmitiu ao vivo pela internet parte do massacre que cometeu nesta sexta-feira contra duas mesquitas na cidade de neozelandesa de Christchurch, onde matou 49 pessoas. Pelo menos 48 pessoas ficaram feridas na ação, classificada pelo governo como “terrorista”.
O atirador foi identificado como Brenton Tarrant, personal trainer australiano de 28 anos que há três meses vive na Nova Zelândia. Ele foi preso e indiciado por assassinato e compareceu neste sábado (horário local) a um tribunal. Ele ouviu impassível as acusações. Outras duas pessoas foram detidas para determinar se tiveram algum envolvimento no ataque, o pior da história da Nova Zelândia, um país tão pacífico que os policiais dificilmente carregam armas e os assassinato não passaram de 35 em 2017.
Na transmissão ao vivo nas redes sociais, com alta qualidade de áudio e som, Tarrant é visto disparando primeiro nos frequentadores da mesquita Al-Noor e depois se movendo de vítima a vítima, atirando nos feridos que tentavam fugir. Nas imagens, a linguagem corporal e o enquadramento lembra a de um jogo de videogame. Ao sair do carro, ele se move de forma lateral, para que a imagem vista pelos internautas seja a do arsenal que levava em seu porta-malas.
Logo após ao ataque, diversas viaturas de polícia foram chamadas. Toda a região central da cidade de 400 mil habitantes foi interditada por suspeitas de bomba. Restaurantes e lojas foram fechados. O comissário Mike Bush afirmou que foram encontrados “dispositivos explosivos nos veículos utilizados pelos suspeitos” e o Exército conseguiu desarmar as bombas.
Um dos sobreviventes, Khaled Al-Nobani, disse à imprensa local que dois de seus amigos morreram. Um era refugiado da Síria e deixou mulher e quatro filhos. Ramzan Ali também estava entre os 300 fiéis na Al-Noor. O homem de 62 anos conta que o atirador entrou pela porta principal e começou a atirar, enquanto todos corriam em direção às outras duas portas da mesquita. Ele acredita que foi um dos últimos a escapar. “Saí correndo e pulei por uma janela que já estava quebrada. Eu vi outro homem sendo morto com um tiro no peito enquanto eu escapava.”
Na segunda mesquita atacada, a Linwood, a 5 quilômetros da primeira, oito pessoas morreram. Ikechukwu Ezeanya não estava no local na hora do ataque, mas afirmou que seus amigos estavam. Muitos ainda estão aterrorizados.
Em Christchurch, moram cerca de 3 mil brasileiros. Luiza Veras, de 39 anos, trabalha na prefeitura, a algumas quadras de onde ocorreu o atentado. Ela diz que não sabia o que estava acontecendo. “Ficamos confinados das 2 horas da tarde até as 6. Alguns minutos depois, recebi mensagem da escola do meu filho, para não buscá-lo. A sensação de medo foi grande, pois na prefeitura trabalham muitos imigrantes e a ameaça de bomba era grande”, disse Luiza.
Antes de agir, o atirador divulgou nas redes sociais e em fóruns de extrema direita um manifesto em favor da “cultura cristã europeia e branca”, contra imigrantes muçulmanos, o que levantou críticas sobre a disseminação de conteúdo racista online e a falta de ação de empresas do ramo em coibir mensagens extremistas. A rapidez com que o conteúdo do manifesto e o vídeo dos ataques se espalhou na internet provocaram críticas às gigantes de tecnologia.
O Facebook e o Twitter derrubaram as contas vinculadas ao atirador. Muitos usuários publicaram apenas reproduções dos textos, difíceis de serem detectadas pelos algoritmos das empresas. Desde a ascensão do Estado Islâmico, o Facebook tem investido em inteligência artificial para impedir a disseminação de conteúdo ligado ao terrorismo.
No texto do manifesto, o atirador diz que seguia o exemplo de extremistas como Anders Breivik, o neonazista responsável pela morte de 77 pessoas na Noruega, em 2011, e o supremacista branco Dylann Roof, que matou nove fiéis negros em uma igreja em Charleston, no Estado americano da Carolina do Sul, em 2015.
O manifesto cita como motivação o “genocídio branco”, termo geralmente utilizado por grupos racistas para se referir à imigração e ao crescimento de minorias. O presidente americano, Donald Trump, citado no manifesto como “fonte de inspiração”, disse ontem a repórteres que não vê o nacionalismo branco como uma ameaça crescente para o mundo e atribuiu tais ataques a “pequenos grupos de pessoas que têm sérios problemas”. Ele classificou o massacre como “terrível”.
A primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, condenou o atentado e disse que o atirador adquiriu legalmente as cinco armas usadas nos ataques. Segundo estimativas, a Nova Zelândia tem 1,5 milhão de armas de fogo – 1 para cada 3 habitantes. A premiê já antecipou que as leis de armas no país terão profundas mudanças.
Ela destacou que as vítimas eram de vários países muçulmanos e citou Paquistão, Turquia, Arábia Saudita, Bangladesh, Indonésia e Malásia. A comunidade muçulmana da Nova Zelândia existe há pelo menos 150 anos, mas a população cresceu a partir dos anos 90, quando o país começou a receber refugiados do Iraque, da Síria e do Afeganistão. Em um país de 5 milhões de pessoas, 56 mil professam o Islã.
A premiê neozelandes afirmou que o nível de ameaça à segurança nacional foi elevado para o segundo mais alto e forças antiterrorismo foram ativadas em todo o país e na Austrália.
A polícia advertiu a população a evitar as mesquitas em todo o país e ressaltou que não procura mais suspeitos. Um enorme cordão policial foi formado para isolar parte de Christchurch, cidade da Ilha do Sul da Nova Zelândia. Todas as escolas da cidade estão fechadas e a polícia pediu “às pessoas no centro que evitem permanecer nas ruas e informem qualquer comportamento suspeito”.
Policiais retiraram os moradores de uma propriedade perto da cidade de Dunedin, suspeitos de ligação com os ataques às duas mesquitas, o mais grave contra muçulmanos em um país ocidental.
Ataques a duas mesquitas na cidade de Christchurch
Tragédia
Na mesquita Masjid Al Noor, um imigrante palestino que pediu para não ser identificado disse que viu um homem ser baleado na cabeça. “Escutei três tiros e após uns dez segundos tudo começou novamente. Devia ser uma arma automática porque ninguém consegue apertar o gatilho tão rapidamente”, contou ele. Segundo testemunhas, “as pessoas saíram correndo” do local, “algumas cobertas de sangue”.
Uma testemunha, Len Peneh, disse que viu um homem com roupas pretas entrar na mesquita e logo depois escutou dezenas de disparos. Ele contou também que viu o agressor enquanto fugia antes da chegada das equipes de emergência, e que entrou no local para tentar ajudar. “Vi mortos por todos os lados.” Minutos depois, a imprensa local reportou disparos em outra mesquita.
No momento do atentado, a mesquita Masjid Al Noor estava repleta de fiéis, incluindo a equipe de cricket de Bangladesh. Segundo testemunhas, os jogadores conseguiram fugir para um parque ao lado do prédio, no centro da cidade.
Um porta-voz da equipe confirmou que todos os jogadores, que estão no país para uma partida, conseguiram escapar ilesos. “Estão em segurança, mas também em estado de choque. Dissemos para toda a equipe ficar confinada no hotel”, informou o porta-voz. O jogo que estava marcada para este sábado contra a Nova Zelândia foi cancelado.
A companhia aérea Air New Zealand cancelou ao menos 17 voos que chegariam ou sairiam de Christchurch, sob o argumento de que os funcionários não poderiam rastrear passageiros e suas bagagens.
Ataque ao vivo na internet
Um vídeo de 17 minutos publicado em uma rede social mostra momentos do ataque. É possível ver o atirador saindo de seu automóvel e entrar atirando na mesquita. Depois, ele se volta para as vítimas e atira novamente. Também dispara contra os feridos que tentam fugir.
No vídeo, vê-se o atirado deixando o local e disparando em várias direções na calçada antes de voltar ao carro para pegar outra arma. Ao retornar ao prédio, ele atira contra diversas pessoas próximas. Depois de alguns minutos, ele volta ao veículo e foge. “Não houve nem tempo para mirar, havia tantos alvos”, diz o homem do vídeo. A polícia fez um apelo para que as pessoas não compartilhem nas redes sociais “imagens extremamente insuportáveis”.
Além disso, o suspeito fala sobre o objetivo de “reduzir diretamente as taxas de imigração” e explica que escolheu a Nova Zelândia como alvo para mostrar que não há mais nenhum lugar no mundo “seguro e livre da imigração em massa”. No documento, ele fala que “foi inspirado pelo Cavaleiro Justiceiro Breivik“, em referência ao massacrecometido pelo neonazista Anders Breivik na Noruega em 2011.
O Twitter disse que excluiu a conta na qual os links foram publicados e está “trabalhando para remover o vídeo da plataforma”, segundo um porta-voz da empresa. O Facebook “removeu rapidamente o vídeo e as contas do atirador do Facebook e do Instagram” assim que a companhia foi alertada pela polícia, afirmou a porta-voz Mia Garlick em um comunicado. “Também estamos removendo qualquer elogio ou apoio ao crime e ao atirador ou atiradores.”
A mãe de uma menina sueca morta em um ataque jihadista em 2017 condenou nesta sexta o atentado às mesquitas na Nova Zelândia. O atirador disse em seu manifesto que pretendia vingar a morte da garota.
A ação “vai contra tudo o que Ebba defendia”, afirmou Jeannette Akerlund, à TV pública SVT. “Ela espalhava atenção e amor a seu redor, não o ódio. Estou sofrendo com as famílias afetadas e condeno todas as formas de violência.”
Ebba Akerlund, de 11 anos, morreu no dia 7 de abril de 2017, ao ser atropelada por um caminhão em uma rua comercial de Estocolmo por Rakhmat Akilov, um imigrante do Usbequistão. Ele foi condenado à prisão perpétua em junho de 2018. Antes do ataque, Akilov prometeu fidelidade ao grupo jihadista Estado Islâmico (EI).
Violência
Jacinda Ardern lamentou que seu país vive um dos “dias mais obscuros” de sua história diante das “múltiplas vítimas” nas duas mesquitas. “Fica claro que este é um dos dias mais obscuros da Nova Zelândia. Claramente o que ocorreu aqui foi um ato de violênciaextraordinário e sem precedentes.” Segundo ela, “muitas pessoas afetadas diretamente pelo ataque devem ser imigrantes, talvez refugiados, que escolheram a Nova Zelândia para seu lar”.
O líder da oposição, Simon Bridges, manifestou publicamente seu “apoio à comunidade islâmica” local. “Ninguém neste país deveria viver com medo, não importa sua etnia ou religião.” O premiê Scott Morrison se declarou “horrorizado com as informações” sobre os ataques no país vizinho.
A rainha Elizabeth II da Inglaterra, que também é chefe de Estado da Nova Zelândia, se declarou “profundamente triste com os terríveis acontecimentos em Christchurch hoje”. “Neste momento trágico, meus pensamentos e orações estão com todos os neozelandeses”, afirmou ela em um comunicado publicado em Londres. “O príncipe Philip e eu enviamos nossas condolências às famílias e amigos das pessoas que perderam a vida.” / COM NYT, W. Post, Reuters e AFP