Para um dos mais respeitados pesquisadores do mundo digital, a interferência russa na campanha dos EUA é um efetivo ataque à democracia – e o Brasil não está a salvo de ações de agentes externos e internos
‘Hoje, há manuais de como construir cluster de pensamentos e de notícias falsas, ativar certos tipos de informação de redes sociais para se conectarem, se associarem, e, ao mesmo, para criticar qualquer posição contrária. Assim, é possível imaginar que a gente tenha no Brasil eleições de interesse de agentes externos e internos’
O paraibano Silvio Meira, 62 anos, é um dos pesquisadores mais influentes na área de tecnologia da informação e um dos pensadores mais atuantes no debate sobre democracia. Professor do Centro de Informática da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e da Escola de Direito do Rio da FGV, ele, nesta entrevista, volta as atenções para as redes sociais e as eleições, mais especificamente sobre a influência dos russos na campanha dos EUA — e como o Brasil está desprotegido em relação a ações de agentes internos e externos.
“A ação dos russos inaugura a forma de ataque aos Estados, usando mecanismos contra a representação popular e democrática, que é o mecanismo eleitoral. Não há guerra mais efetiva do que essa”, afirma Meira, graduado em engenharia elétrica no Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), no final dos anos 1970, e pesquisador nas universidades de Kent (Inglaterra) e Harvard (Estados Unidos). No Brasil, a preocupação do pesquisador está nas notícias falsas, espalhadas pelo Facebook, Twitter e WhatsApp. A seguir, os principais trechos da entrevista, feita por telefone, no final da tarde da última quinta-feira:
Redes sociais rimam com democracia?
Essa é a pergunta de um trilhão de dólares. Vivemos um dos pedaços mais complicados da história da humanidade, em que as pessoas não entendem as tecnologias que usam. E isso tem a ver com o que ocorreu nos últimos 50 anos. O conjunto de saltos tecnológicos associados à tecnologia de informação e comunicação foi chegando paulatinamente nos espaços público e privados, criando uma democracia verbal. Um grande espaço de expressão, onde todo mundo pode dizer o que pensa sem medir as consequências. Isso tem níveis variados de impacto. Se há 25 anos (na pré-internet), quem tinha o capital podia ter a curadoria do que estava acontecendo, do que era publicado, o que levava a um domínio da informação, hoje você tem um potencial para, literalmente, qualquer um, a um custo extremamente baixo, não só dizer o que pensa, mas também ser ouvido por uma infinidade de pessoas. As consequências disso não são fáceis de serem entendidas. E só quando a gente vê um conjunto de estudos que estão sendo feitos nos últimos meses (e que vão durar anos) é que se começa a entender o tamanho da manipulação, a extensão do impacto, por exemplo, da ação da Rússia sobre as eleições dos EUA.
E qual foi esse impacto?
Os estudos começam a mostrar que houve uma atividade intensa de criação de notícias, de sites de publicação e anúncios*. Um só agente, por exemplo, comprou US$ 100 mil de anúncios para promover informação na direção de certos públicos, o que de certa maneira é fácil de fazer nos EUA em função de mecanismos e das regiões de votações. Lá, todo mundo sabe onde todo mundo vota. Isso pode ter consequências nefastas. Quando a gente entender o que houve nos EUA na eleição de Trump, vamos ter uma boa ideia do que são as redes sociais.
O que é possível saber até agora?
Redes sociais são plataformas multifacetadas. De um lado, você tem a capacidade de expressão pessoal para construir trilhas de histórias que são de interesse de certas comunidades. De outro, você tem anunciantes de todos os tipos que, no caso de uma eleição, podem não apenas tentar, mas, efetivamente, conseguir contaminá-la, criando espaços de conflito. Essa mesma tentativa, que talvez tenha sido bem sucedida nos EUA, foi feita na França e na Alemanha. Na França, ela foi desmontada. No caso da Alemanha, a gente não sabe ainda os efeitos.
O que dá para tirar como lição com esse episódio dos EUA?
O que a gente tem até agora, com poucos pontos em aberto: a Rússia influiu na eleição americana, contaminando opiniões, talvez de milhões de eleitores, nos locais onde as eleições poderiam ser viradas. É uma eleição que depende de colégios eleitorais e tem alguns colégios que são os que eles chamam de swing states (estados onde as eleições são imprevisíveis), onde a mudança de 2% ou 3% dos votos resolve a eleição. Foi em cima dos eleitores desses estados que se concentrou essa tentativa bem-sucedida de manipulação. A minha opinião é que ela teve sucesso. E isso inaugura a forma de você atacar Estados. De você usar mecanismos e atacar na raiz, detonando o mecanismo de representação democrática, que é o mecanismo eleitoral, você está indo num princípio fundador de um Estado democrático. Não há guerra mais efetiva do que essa.
Isso pode estar ocorrendo aqui?
Quando se analisa os clusters (agrupamentos de coisas e pessoas semelhantes) pró e contra qualquer assunto, descobre-se que eles estão em qualquer lugar do mundo. E esses dois lados, pró e contra, não conversam. Há muito poucos pontos de contato, de diálogo. E isso vem impedindo que haja qualquer discussão sobre essa questão de consenso coletivo. Numa eleição democrática, os ganhadores têm de respeitar os perdedores como minoria e como parte do processo de evolução daquela sociedade. A democracia e o governo têm de ser exercido para todos. A gente perdeu muito isso no Brasil. E, em particular, as redes sociais** foram usadas para aumentar essa divisão, do “nós contra eles”. E com essa divisão, à medida que ela se estabelecesse, como no Brasil, onde voto é um para um, é possível sim imaginar que em eleições muito próximas, quem estiver interessado em interferir, pode, sim, interferir. Hoje, há manuais de como construir cluster de pensamentos e de notícias falsas, ativar certos tipos de informação de redes sociais para se conectarem, se associarem, e, ao mesmo, para criticar qualquer posição contrária. Assim, é possível imaginar que a gente tenha, no Brasil, eleições de interesse de agentes externos e internos.
Os boatos sobre o assassinato do doleiro Yousseff e sobre o fim do Bolsa Família nas eleições passadas mostram que isso já ocorre…
É muito fácil espalhar boatos desses. Veja por exemplo a quantidade de grupos de Whatsapp que as pessoas têm. De repente, você recebe a mesma imagem em três grupos diferentes, num espaço de poucos minutos. Espalhar alguma notícia de que uma coisa vai acontecer ou já aconteceu é muito fácil. E ainda por cima existe uma ingenuidade de que a internet é um meio, em vez de ser um espaço. As pessoas chegam e dizem: “Eu li isso na internet”. E quando são questionadas sobre fontes, sobre qual o veículo publicou, elas dizem: “Isso não interessa”. As pessoas querem acreditar em determinadas coisas, querem que seja verdade. As pessoas leem as manchetes, mas não sabem o link de onde veem, e isso acaba se tornando uma espécie de uma verdade aceita por muita gente.
O uso das redes no celular aumenta a dificuldade de saber o que é fake?
É a dinâmica do meio. Se estou sentado em uma mesa com uma máquina onde eu posso abrir várias janelas, eu estou numa posição maips reflexiva, uma posição em que eu consigo questionar as coisas. Se eu estou na fila do banco e alguém me manda uma mensagem dizendo que está acontecendo tal coisa e eu queria acreditar que aquilo realmente está acontecendo na realidade, eu marco aquela mensagem ou eu republico no Facebook, no Twitter ou mando para 100 grupos de Whatsapp. Se você pensar que, facilmente, uma pessoa tem 50 grupos de Whatsapp, cada um com 100 pessoas, um clique dessa pessoas significa basicamente um alcance de 5 mil outras pessoas. Se cada uma dessas pessoas mandar para mil, em pouquíssimo tempo, em fração de minutos, você tem 5 milhões de pessoas que receberam determinada informação. Se 20% dessas pessoas acreditarem naquilo, um milhão de pessoas de repente desenvolverem uma crença em uma coisa que não aconteceu. Essas coisas acontecem numa velocidade tão grande, que se você perguntar depois para as pessoas quais foram as últimas coisas que realmente aconteceram, elas não sabem. Virou uma espécie de crença pessoal, fica muito difícil você verificar se teve ou não teve realmente o acontecimento.
A Lava-Jato estimulou a atenção do eleitor na política?
Eu gostaria de acreditar que sim. A gente precisa ver o impacto de longo prazo. Eu acho que se a gente tivesse um ecossistema de política minimamente sério, a interpretação que ele teria que ter da Lava-Jato é que ele tem que ser refundado do zero, não precisaria nem esperar acabar a Lava-Jato para refundar o sistema político todinho. A gente tem uma Lava-Jato andando há quase quatro anos e não vi nenhum esforço sério da política e dos políticos de refundar o nosso sistema.
E o que o senhor imagina que deveria ser feito?
O que é muito pior do que a Lava-Jato é a ineficiência, a inoperância e a falta de efetividade do Estado, isso consome muito mais dinheiro do que a corrupção. O que está em jogo é a liberação de recursos para deputados e senadores, e a nomeação de pares desses deputados e senadores para cargos. A Lava-Jato virou uma espécie de contraponto à política, mas a política continua funcionando como já estava funcionando, e se continuar assim, sem reformas absolutamente radicais nos fundamentos da representação e da execução da atividade política, a gente vai ter o mesmo problema acontecendo de novo.
É possível imaginar a nobreza da política nas redes?
Uma estratégia que eu acho que seria absolutamente matadora de construção de comunidades a longo prazo é usar as redes sociais para aumentar a transparência dos mandatos.
O político brasileiro despertou para a internet?
Não. De jeito nenhum. Estamos longe ainda. Na verdade ele sabe que existe, e todos eles têm presença em rede — o que não é uma estratégia em rede. Eles se deixam fotografar, por exemplo, em algum lugar, jogam as fotos na rede etc. Mas não é uma estratégia maior. Há partidos e políticos que efetivamente têm estratégias de rede e algum sucesso. Mas, quando se olha para o universo como um todo, as estratégias dos políticos nas redes sociais ainda são muito primárias.
É possível pensarmos em democracia direta?
Tem pelo menos um caso recente no qual você deve pensar três vezes antes de falar em democracia direta, que é o Brexit: você tem um partido que tinha certeza absoluta de que a votação do Brexit ia ser para ficar na União Europeia, e provoca um plebiscito, e aí esse plebiscito é contaminado com opiniões parecidíssimas com as que aconteceram nos EUA agora. Um bom número de ingleses, principalmente o pessoal mais antigo, achou que estaria melhor fora da União Europeia do que dentro dela. Mas a Inglaterra fora da UE é só mais um país. Para mim, o Brexit foi a eleição que botou a Inglaterra numa escada rolante, descendo a caminho do terceiro mundo. Deixaram o medo das pessoas exercer o controle. Você usa um conjunto de fatores que são de fácil percepção de serem falsos (para quem efetivamente entende o que está acontecendo), mas quem está entendendo o que acontece não passa de 10% das pessoas.
Ocorreria a mesma coisa aqui?
No Brasil, tendo 100 milhões de eleitores, talvez 10 milhões de pessoas tenham esse aprofundamento na hora do voto. O resto está indo por opiniões, faro, sensibilidade, pelo que você quiser, menos por convicção. Isso não conduz a um ambiente em que você possa confiar em votações feitas através de plebiscitos. Tem muita coisa pra ser escrita ainda, em ambientes maiores, antes que você esteja pronto para fazer democracia direta em grandes redes. Eu não faria no Brasil. Se fizéssemos um plebiscito a favor ou contra a pena de morte, você aprovaria o projeto, e com uma margem grande. Isso com as pessoas agindo ali no calor dos acontecimentos, numa interpretação emocional da coisa, e não humanística. Se você fizer um plebiscito hoje, contra ou a favor da pena de morte, a pena de morte ganha — e ela não resolve nada.
*Anúncios no Face
O Facebook garantiu na última quinta-feira que vai entregar ao Congresso norte-americano três mil anúncios políticos pagos por russos para divulgação nos meses anteriores e posteriores à eleição nos EUA no ano passado. Há uma investigação em curso conduzida pelo promotor especial Robert Mueller sobre a suposta interferência russa na eleição. Mark Zuckerberg, CEO do Facebook, disse em transmissão ao vivo na rede que apoia a investigação no Congresso.
**Previsão na reforma
O substitutivo ao projeto de reforma eleitoral em tramitação no Senado diz que é “vedada a veiculação de propaganda eleitoral paga na internet, excetuado o impulsionamento de conteúdo, desde que contratado por partidos e candidatos”. No caso de reclamação sobre notícia falsa, a proprietária da rede é obrigada a exigir a identificação do dono da publicação para manter o texto. A expectativa, porém, é que tais regras sejam definidas apenas no TSE.
Fonte: Correio Braziliense