Na última reportagem da série “Zika em Alagoas: Esquecidos pelo Estado”, governo de Alagoas admite omissão e especialistas buscam respostas para epidemia.
Se o início do zika no Brasil é cheio de incógnitas, o futuro não é diferente. Em Alagoas, duas pesquisas estão sendo desenvolvidas. Uma investiga como funciona o cérebro dos bebês afetados pelo vírus. A outra estuda a imunidade de mães infectadas no caso de uma nova gravidez.
À frente dos estudos, a infectologista e professora da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) Adriana Ávila conta que o Instituto do Cérebro da da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul) iniciou uma série de exames, incluindo ressonância magnética, para avaliar a função cerebral dos bebês infectados.
Já a pesquisa de acompanhamento de gestantes está prevista para ser iniciada ainda este ano. Um dos objetivos dos estudos é descobrir se uma mulher que teve zika está imune e se a infecção anterior protege o bebê na gravidez.
À medida que as descobertas sobre o vírus avançam, novas políticas públicas podem ser adotadas. Um exemplo do passado foram as evidências de transmissão sexual da doença, uma vez que no início da infecção o mosquito era conhecido como o único vetor de transmissão.
Na casa de Deysiane Feitosa Dantas Oliveira, de 27 anos, ela e o marido foram infectados. A filha, nascida em dezembro de 2015, tem hidrocefalia, acúmulo de líquido no crânio. No ultrassom feito aos cinco meses, foi identificada uma mancha no cérebro de Maria Luiza. Até hoje Deysiane não tem certeza da relação do vírus com a deficiência da filha.
A gente suspeitou na hora [da relação com o zika] porque os outros médicos não me falaram por que esse problema dela. Não é genético porque ninguém tem. A gente suspeita. O médico de Maceió perguntou se meu esposo tinha tido e ele teve primeiro do que eu e falaram que poderia. Mesmo que eu não tivesse e ele tivesse, acontece. Foi o que me passaram lá.
Moradora de Canapi, a 50 quilômetros de Santana do Ipanema e a 260 quilômetros de Maceió, Deysiane e o marido estão desempregados desde o início do ano, quando mudou a gestão na prefeitura. Na cidade com 17 mil habitantes, as oportunidades são limitadas. A família recebia Bolsa Família, mas o benefício foi cortado, e eles não sabem o motivo. O BPC (Benefício de Prestação Continuada) de Maria Luiza foi pedido em março, mas até setembro não havia resposta.
Com 11 meses, Luiza fez uma cirurgia em Arapiraca, a 160 quilômetros de Canapi, para retirar um cisto no cérebro que prejudicava a visão e os movimentos. Em breve, ela terá de fazer uma nova operação, na qual será implantada uma válvula para que o líquido não se acumule.
Veja o vídeo acessando ao link da matéria: HuffPost
A criança de 1 ano e dez meses não anda. Tem dificuldades para ingerir líquidos e bebe água na colher. A cada três ou quatro meses, tem vômitos frequentes. Um problema no olho faz a secreção acumular, o que gera irritação.
Antes da primeira cirurgia, ela chegou a fazer fisioterapia por três semanas, mas o serviço deixou de ser oferecido em Canapi. A mãe tenta uma vaga em Santana, mas ainda aguarda para saber se a filha se encaixa no programa. “Se ela não tivesse parado, acho que estava pelo menos em pé”, afirma Deysiane. Ela também aguarda órtese ( um aparelho externo para imobilizar ou auxiliar os movimentos dos membros ou da coluna vertebral) e andador. Enquanto isso, a mãe leva o bebê de quase dois anos no colo para lá e para cá.
A outra opção de atendimento seria ir para Maceió. “Acho muito cansativo e não vai compensar porque é uma vez só por semana”, diz a mãe. Nas vezes em que precisou ir para a capital, teve de sair de casa às 2h da madrugada e Luiza só foi fazer os exames às 16h. O trecho da BR-316 que chega a Canapi não é asfaltado. “A gente já arriscou a vida saindo”, conta.
Luiza nasceu com o perímetro da cabeça regular, mas aos seis meses a família percebeu o crescimento. Além de cuidar do bebê, Deysiane precisava dividir a atenção com a filha mais velha, Valentina, que na época tinha 1 ano e meio. “Ela batia, mordia. Sofri muito sozinha para cuidar delas”. Depois da segunda gravidez, a alagoana não pensa em ter mais filhos. “Se ela não tivesse o problema, [teria] sim, mas com ela fica mais difícil”, revela.
O direito ao aborto legal
A discussão sobre o aborto de mães infectadas pelo zika ganhou força em janeiro de 2016, quando a antropóloga Debora Diniz, do Instituto de Bioética Anis, anunciou que a entidade ingressaria com uma proposta no STF (Supremo Tribunal Federal) para permitir a interrupção da gestação nos casos de fetos diagnosticados com microcefalia.
Na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5581, protocolada pela Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep) no STF em agosto de 2016, a entidade aponta diversas omissões do poder público no acesso à informação, a cuidados de planejamento familiar e aos serviços de saúde.
Além de pedir que se julgue como constitucional a interrupção da gravidez nesses casos, a Anadep exige ajustes na concessão do BPC para incluir todas crianças com sequelas do zika e para que o benefício não seja limitado ao prazo de 3 anos após o fim da licença-maternidade.
A ação pede ainda que o poder público garanta tratamentos a crianças com microcefalia em centros especializados em reabilitação distantes no máximo 50km de suas residências, entrega de material informativo e distribuição de contraceptivos de longa duração às mulheres em situação vulnerável. Não há previsão para o processo, de relatoria da ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo, ser julgado.
Prevenção do zika
Apesar do fim do estado de emergência pelo zika, anunciado pelo Ministério da Saúde em maio de 2017, pesquisadores apontam para possíveis riscos da doença no Brasil. Relatório da Human Rights Watch publicado em julho alerta que o País investiu de forma inadequada para conter o vírus e que as mulheres ainda estão vulneráveis.
A resposta das autoridades brasileiras à epidemia se concentrou no combate ao mosquito, no acesso da população a serviços de saúde e em pesquisa, mas problemas sistêmicos relacionados aos serviços públicos de água e saneamento ficaram de lado, segundo o estudo.
Se para as mulheres e crianças afetadas pelo zika o cuidado com os bebês se tornou inseparável de cada atividade do dia a dia, o mesmo não acontece na rede pública de saúde. “As pessoas não estão mais pensando em zika. Não estão notificando e não estão mais investigando. Não tem como a gente afirmar se tem ou não zika circulando atualmente”, afirma a infectologista do Hospital Escola Hélvio Auto (HEHA), Mardjane Nunes.
Sem melhorias no saneamento, a prevenção fica fragilizada. As falhas das políticas públicas se multiplicam. A distribuição gratuita do repelente, por exemplo, é limitada para quem recebe Bolsa Família. “A pessoa que recebe R$ 600 por mês tá fora da faixa do Bolsa Família, mas também não consegue gastar R$ 100 por mês em repelente”, exemplifica a médica. Outro entrave é a conscientização para passar o produto todos os dias.
Auriene Oliveira, pediatra do HEHA que atende as famílias atingidas pelo zika, reforça:
À medida que o número de casos novos foi diminuindo, toda aquela atenção do primeiro momento também foi se dissipando (…) Os pacientes do interior, logo no começo, a gente conseguiu mais transporte. Hoje em dia está muito mais difícil. Muitas vezes a gente liga para marcar um retorno e a criança acaba não vindo porque não tem transporte da prefeitura e ela, claro, não consegue pagar.
‘Ninguém olha para isso’
As falhas do poder público são admitidas pelo próprio governo do estado. “O que a gente tem em Alagoas, talvez não tão diferente de outros estados, mas muito ruim aqui, é a questão do saneamento, do abastecimento de água, e isso não mudou. Então fica todo mundo enlouquecido com a microcefalia, mas ninguém olha isso, a causa primária”, afirmou ao HuffPost Brasil a superintendente de Vigilância em Saúde de Alagoas, Cristina Rocha, da Secretaria de Saúde de Alagoas (Sesau).
Ela conta que a epidemia de Aedes aegypti foi “uma surpresa”, quando um alto índice de infestação no sertão começou entre janeiro e fevereiro de 2015. “Teve um final de semana que me ligaram ‘Cristina, está todo mundo dizendo que tem muita gente nas emergências com a sintomatologia de dengue’ e fomos olhar os indicadores e vimos que tinha 25 municípios com aumento [da infestação]”, afirma.
Tanto a superintendente quanto o supervisor de Endemias da Sesau, Paulo Protásio, apontam para dificuldades sistêmicas. “No monitoramento, temos encontrado inconsistências em vários aspectos, tanto de logística, quanto de operações de campo e procedimentos técnicos”, admite Protásio. Cristina Rocha aumenta a lista:
Falta de material básico para fazer a pesquisa da larva. Precisa de uma lanterna porque o mosquito geralmente fica num lugar escuro. Tem quem trabalha com horário corrido e não dá para cobrir todos imóveis, não tem transporte para cobrir deslocamento. O agente não tem uniforme, é desviado para atividade administrativa ao invés de estar no campo, supervisor não tem a formação.
De acordo com a superintendente, essas lacunas foram identificadas em um mutirão e informadas a gestores locais. As ações de controle do mosquito são executadas pelos municípios e são contínuas, de acordo com a Secretaria de Saúde. Ao estado, cabe monitorar e fornecer capacitação técnica.
Novas soluções para o zika
Se a Vigilância foi pega de surpresa pela epidemia de zika, na área de Atenção à Saúde da secretaria não foi diferente. “A gente não tinha uma estrutura dessa para atender essa situação”, admite Cristina Rocha. Ela conta que a solução possível foi encaminhar as tomografias para o Hospital Geral de Maceió, que acabou centralizando o atendimento.
De acordo com a assessora técnica do Núcleo de Arboviroses da Sesau, Núbia Lins, o Laboratório Central de Alagoas adotou o exame PCR desde o início do ano, em vez da sorologia, porque ele seria mais preciso. “A sorologia IGM não é específica para dengue e sim para flavivírus e zika também é flavivírus, então estava dando reação cruzada”, afirma. O PCR, contudo, só detecta o vírus até o quinto dia do início da doença, enquanto a sorologia tem uma escala maior de confirmação.
Sobre os casos descartados de síndrome congênita do zika, Cristina Rocha responde que o estado apenas seguiu a orientação do governo federal. “Não é que Alagoas descartou os casos de síndrome congênita do zika e microcefalia. Alagoas seguiu o que estava sendo regulamentado pelo Ministério da Saúde.”
Dos 443 bebês notificados desde o início da epidemia, em 2015, até setembro de 2017, 200 casos foram descartados. Em Maceió, um mutirão voluntário para reavaliar essas crianças revelou que 38% dos 26 diagnósticos concluídos tinham microcefalia, atraso no desenvolvimento ou alguma outra alteração.
A secretaria discute a adoção de um novo protocolo de atendimento às crianças, para substituir o de janeiro de 2016. O principal entrave é a descentralização do atendimento, que depende de acordos entre gestores e, em alguns casos, com o setor privado. A Sesau também irá começar uma revisão dos casos descartados. Foi organizado um cronograma para que enfermeiros visitem as casas de todas as crianças desse grupo e façam uma pré-avaliação na hora, por meio de uma ficha.
De acordo com o novo protocolo, o recém-nascido com suspeita de síndrome congênita do zika deve fazer o teste de sorologia para o vírus e ser encaminhado para consulta com infectologista ou pediatra capacitado em atendimento de infecções congênitas. Se a avaliação clínica for normal, o bebê deve ter acompanhamento no município onde mora até os 3 anos. No caso de ser detectada qualquer alteração no desenvolvimento neuropsicomotor, a criança deve ser reinserida no fluxo de atendimento.
Para os casos de alterações detectadas na consulta médica, os bebês são encaminhados para tomografia. Se houver alterações no laudo, a criança segue para consultas específicas e exames complementares e é encaminhada para os centros de reabilitação. As consultas da primeira macrorregião do estado devem ser concentradas no HEHA, enquanto as da segunda macrorregião ficam concentradas no Centro de Medicina Física e Reabilitação de Arapiraca (CEMFRA).
Atualmente, a orientação é que casos descartados no exame de tomografia, mas em que pediatras identifiquem alguma alteração, sejam informados para a Secretaria de Saúde de Alagoas, para que ela marque uma avaliação com neuropediatras dos centros de atendimento. Não há, contudo, uma contabilidade dos casos reclassificados.
Sobre o tempo do resultado dos exames, a Sesau informa que a tomografia demora 48 horas para ficar pronta e que repassa os exames para serviços municipais entregarem às mães. Quanto às dificuldades de sensibilizar a população, Cristina Rocha afirma que o protocolo da secretaria orienta como abordar a família, mas é uma questão que “depende muito do profissional”.
O que o Ministério da Saúde diz sobre zika
O Ministério da Saúde informou ao HuffPost que destinou R$ 662,2 mil em 2016 para Alagoas para atendimento das crianças com sequelas do zika e que foram incorporados R$ 14,6 milhões/ano aos tetos para incremento da Média e Alta Complexidade Ambulatorial e Hospitalar (MAC) do estado e dos municípios alagoanos.
De acordo com a pasta, “cabe aos gestores dos estados e municípios organizar a regulação assistencial de acordo com a capacidade instalada nos locais” e a Estratégia de Ação Rápida, desenvolvida em março de 2016, buscou “viabilizar o diagnóstico completo das crianças no menor tempo e da forma mais confortável possibilitando o encaminhamento mais adequado para o cuidado”.
A pasta recomendou que bebês de mães infectadas pelo zika na gestação fossem acompanhados até os 3 anos de idade e que “outras malformações decorrentes do vírus” além do tamanho do perímetro cefálico fossem investigadas. O Ministério da Saúde passou a recomendar também uma segunda ultrassonografia no pré-natal para gestantes com suspeita de zika. O padrão é de apenas uma.
De acordo com a pasta, o documento “Orientações integradas de vigilância e atenção à saúde no âmbito da Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional”, de dezembro de 2016, apresenta definições atualizadas para notificação, investigação e classificação dos casos.
Sobre a capacitação de profissionais, o ministério informou que mais de 25 mil funcionários participaram de atividades de tele-educação e mais de 200 mil de atividades de Educação à Distância (EAD). Em 2017, serão ofertadas 395 vagas para um curso em EAD sobre “Estimulação precoce em crianças com alterações decorrentes da síndrome congênita do vírus zika e outras etiologias”.
Quanto à prevenção, a pasta informou que os recursos para as ações de Vigilância em Saúde, incluindo o combate ao Aedes aegypti, “cresceram 83% nos últimos anos, passando de R$ 924,1 milhões para R$ 1,7 bilhão, em 2016”. Para 2017, a previsão é de R$ 1,96 bilhão.
Em janeiro de 2016, Alagoas recebeu ainda R$ 2,6 milhões para implementação de ações contingenciais de vigilância, prevenção e controle de epidemias mediante situação de emergência. Em 2017, o estado recebeu R$ 3,3 milhões com o mesmo objetivo.
Houve ainda um investimento de R$ 69,4 milhões para aquisição de inseticidas e larvicidas e mais R$ 17,6 milhões para a compra de 250 veículos e 650 equipamentos de nebulização de inseticidas, de acordo com a pasta. Foram enviados também 5,3 mil quilos do produto contra insetos. Os envios são feitos mediante solicitação do estado. De acordo com o Ministério da Saúde, serão doados quatro carros para o combate ao mosquito em Alagoas.
Para aumentar a adesão das grávidas ao repelente, o governo federal prepara uma campanha nacional e a publicação de uma nota técnica que amplia o acesso para “todo quantitativo necessário ao período de gravidez” em vez de duas unidades por mês.
Quanto ao incentivo a pesquisas, o ministério informou que em 2015 foi aprovado um recurso extra de R$ 500 milhões e que desde novembro de 2015 a pasta comprometeu “cerca de R$ 465 milhões para pesquisas e desenvolvimento de vacinas e novas tecnologias, além de destinar mais R$ 395,3 milhões para o eixo de assistência à saúde”.
Sobre o Biobanco Nacional, a pasta informou que ainda não há orçamento previsto e que sua implementação vêm sendo discutidas entre a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos e a Secretaria de Vigilância em Saúde, mas ainda não há perspectiva de implementação. Fruto de discussões do 3º Encontro da Rede Nacional de Especialistas em Zika e Doenças Correlatas, realizado em março deste ano, o biobanco seria uma fonte de recursos para pesquisadores.
Fonte: HuffPost