Após cumprir um ano no comando da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, o presidente nacional do PV, José Luiz Penna, afasta-se do cargo para concorrer a uma vaga na Câmara Federal – decisão tomada em razão da necessidade de fortalecer a bancada do PV no Congresso. Aqui ele fala de seu breve mandato, marcado por um modelo de gestão de portas abertas ao diálogo constante com as agentes e produtores culturais, além do esforço em promover tanto o resgate de manifestações populares como a incursão por inciativas inovadoras. Para ele o papel de uma SEC é justamente buscar a inter-relação entre as essas diversas manifestações culturais. “Não se trata apenas de aferir investimentos, mas também reafirmar a importância do debate, do acolhimento, do revigoramento da política cultural”, diz. Veja os principais trechos da entrevista.
— Qual é o balanço que você faz de sua gestão à frente da SEC de São Paulo?
– Absolutamente positiva. Não só pelos resultados alcançados, mas principalmente pela dinâmica que acabamos imprimindo na secretaria. De saída a gente detectou um afastamento da produção independente e dos artistas de uma maneira geral. Depois o corpo da secretaria não se mostrava um polo atrativo capaz de reunir as várias manifestações que estão aí nucleadas na sociedade – desde movimentos de resistência cultural a grupos que representam novos caminhos, que trabalham com horizontes futuros.
Nosso primeiro passo então foi abrir a secretaria, não apenas no sentido simbólico, mas físico. Começamos por retirar todo tipo de barreira que pudesse configurar qualquer restrição formal ao acesso de artistas e o público em geral. Atitudes simples como retirar as catracas da recepção, suprimir crachás etc. Coisas que acho não combinam com um espaço voltado à cultura. E com isso dar novo sentido ao Complexo Júlio Prestes, um belo conjunto arquitetônico {onde prédio, que abriga a SEC, está situado}, mas vazio de alma. No fundo penso que esse é um típico erro que o velho urbanismo exerceu sobre nós, com teses que têm nos levado muitas vezes a um beco sem saída. Uma delas é essa de esvaziar o centro das cidades, gerando polos à distância, sob a justificativa de contornar os habituais problemas dos centros urbanos – trânsito, poluição, degradação predial etc.
Isso é um erro, particularmente no caso da secretaria. Por quê? Porque a SEC tem que vibrar como um polo de animação cultural naturalmente. E pra isso o prédio, que abriga também a Orquestra Sinfônica de São Paulo, tem que ter uma identidade própria. Não só pra cidade de São Paulo, mas para o estado inteiro.
Por isso foi feito um esforço enorme para que houvesse uma clarificação da nossa função, do que a gente podia fazer para dar um sentido a esses equipamentos culturais associados. Porque em síntese são esses equipamentos que representam os canais de diálogo com os produtores culturais, com os artistas. Não se trata apenas de aferir investimentos, sua aplicação e retorno, mas também da importância do debate, do acolhimento, do revigoramento da política cultural do estado. Veja havia programas estratégicos, como o Revelando São Paulo {festival de cultura tradicional paulista}, engavetados, fosse por falta de verba ou interesse maior, e tratamos de reativá-los. Enfim, todo esse movimento para dar uma função política à secretaria.
– Em decorrência disso sua gestão teve a marca das “portas abertas”: a cultura deve falar com todos. É corrente no meio o fato de seu gabinete acolher 4, 5 reuniões simultâneas de grupos distintos diariamente, muitas vezes com cara de uma Torre de Babel. Essa integração faz parte dessa dinâmica de acolhimento? É traço de gestão?
– Gestão! Gestão pensada. Isso não é mero estilo pessoal. É pensado, naturalmente. Há uma tendência atual de as empresas eliminarem divisórias, tapumes e integrar os espaços a fim de estimular o diálogo. Só é preciso ter disposição e jogo de cintura pra transformar esses ambientes em espaços de convivência, de discussões. Basicamente qual é o desajuste? Pense em um produtor cultural que estás nucleado em algum canto da cidade, produzindo o seu trabalho e desconectado de todo o processo. Aonde ele vai se escorar? Como buscar recursos e dividir experiências com outros setores?
— Parece um traço comum a toda produção independente.
— Sim. Veja o caso dos músicos de rua, que por uma loucura, por um fator burocrático qualquer, estavam impedidos de tocar no metrô. Aquela velha história. De outro de outro lado havia os hostels – um segmento interessante, que defende a máxima de que hostel não é só cama, é convivência, é cultura – que estavam demandando apoio ao setor.
Chamei alguns dos seus representantes e propus uma integração: em troca de uma cama, os músicos de rua vão para a porta dos hostels tocar com direito de passar o chapéu. Eles ganham um espaço pra mostrar sua música e esses estabelecimentos a possibilidade dinamizar seus espaços. A partir daí passam a se entender. Penso que juntar pessoas e movimentos é função catalizadora da secretaria. É seu papel buscar a inter-relação entre as diversas manifestações culturais.
— Isso se ajusta facilmente a todas as outras áreas da cultura.
— Há um grupo trabalho em Campo Limpo Paulista (município distante 57 km de São Paulo) que faz um trabalho incessante sobre alimentação. Os caras pesquisam e compilam receitas culinárias de domínio popular. Isso naturalmente é um traço próprio da nossa cultura. E nós passamos a trabalhar com o grupo, com certo aporte para que eles possam integrar o circuito da gastronomia, um segmento em alta, muito dinâmico e capaz de movimentar toda a cadeia produtiva. Ou seja, o resultado esperado é o de desdobramentos em várias frentes. Isso é dialogar com todas essas manifestações. E, além disso, o momento político –e eu estou cansado de dizer isso – é de ruptura do pacto social. E esse movimento de ressignificação do trabalho desses grupos, muitas vezes resistentes de memória cultural – e mesmo as manifestações que prospectam o futuro –passa a ser um canal facilitador para a reconstrução do pacto no Brasil.
– Com essa política de portas abertas a secretaria se abriu para a Cracolândia, uma área conflagrada pelo tráfico e pela concentração de dependentes químicos. Além do caráter simbólico, qual o efeito disso junto à comunidade? E qual o papel da cultura diante de uma realidade como esta?
– A justificativa para a secretaria estar fechada era justamente essa conflagração, que até então, julgava-se, representar um perigo para a coletividade. Nós a reabrimos e nunca tivemos dificuldades. Ao contrário. Ao reabrir as portas da Rua Mauá 51{endereço oficial da SEC}, conquistamos um novo espaço, o Estação Cultura, que em sua inauguração expôs o trabalho de Yatan Canabrava, um fotógrafo experiente que dispõe de um acervo enorme na secretaria, incluindo material sobre o Complexo Júlio Prestes e de inúmeros monumentos tombados pelo Estado. E logo em seguida, com a exposição dos grafiteiros, para nossa surpresa contamos com a colaboração justamente do povo do crack. Teve pelo menos um quadro de um deles exposto junto com a obra de um grafiteiro simbólico de São Paulo, que é o Binho {Ribeiro}.
Enfim, devolvemos para a cidade um salão destinado a todo tipo de manifestações, lançamento de artistas, com agenda específica e tal. E iniciativas como essa têm um forte caráter social. Porque acredito que um espaço quanto mais segregado mais conflito tem. Assim ao reabrir suas portas a secretaria faz um trabalho de inclusão dessas pessoas, além de buscar uma visibilidade maior para a área central da cidade. Pelo menos é um passo na recuperação desse espaço que foi abandonado.
– Sua gestão também foi marcada tanto por investir em iniciativas inovadoras como por resgatar manifestações tradicionais, como é o caso do festival de bandas e fanfarras e atividades circenses.
– O próprio programa Revelando São Paulo, que reuniu {em sua última edição}160 cidades, dá uma boa ideia dessa nossa política. Ele tanto dá destaque às manifestações mais tradicionais, como Festa do Divino, como a outras iniciativas na área da gastronomia, da moda, da música, do artesanato, enfim, expressões de gente do interior e da Capital também. Com um orçamento de 900 mil reais produzimos uma mostra que gerou mais de 7 milhões de reais em 4 dias. Ou seja, geração de trabalho e renda. Mais do que isso: são coisas que reafirmam para os produtores culturais, tanto os memorialistas como os futuristas, que o que eles fazem é importante. Isso é recuperação da autoestima. Isso é um trabalho político.
– A SEC também tratou de renovar conceitos, como é o caso do programa Biblioteca Viva, e de buscar ferramentas tecnológicas para a área.
– Biblioteca Viva está no bojo dessa política de acolhimento e de multiplicidade de meios. É baseado numa ideia muito simples, de que o espaço de uma biblioteca não deve apenas permitir o acesso a conteúdos, à leitura, mas promover a integração da moçada, permitir que ela própria produza seus conteúdos. Isso se ajustou perfeitamente à Biblioteca de São Paulo, instalada no Parque da Juventude, onde antes se erguia a Casa de Detenção do Carandiru, de passado sangrento e triste memória. Na outra ponta, criamos o primeiro hackaton, uma espécie de virada cultural tecnológica – algo, que eu saiba, inédito na administração pública. Durante 24 horas rapazes e moças conviveram discutindo e propondo fórmulas para que pudéssemos empregá-las em nosso trabalho cotidiano.
– A ideia dessa maratona era buscar soluções tecnológicas destinadas à área cultural.
Sim, esse era o mote. Discutir como a cultura se movimenta – e por quais canais – no terceiro milênio. Mas o mais importante foi a reunião, a dedicação e a interlocução deles em torno de elementos de uma área de atuação absolutamente nova. Depois é o seguinte: eu fiz cinema e sei que cinema trabalha o melhor das pessoas – digamos que a televisão representa o saldo médio delas. Na secretaria eu precisava fazer uma coisa de cinema: recuperar a autoestima dos nossos técnicos, funcionários. Prestigiá-los, enfim, pudessem produzir justamente o seu melhor, em vez de ter aquela visão de funcionário padrão, bate ponto, produtividade, aquela coisa que na Cultura não tem sentido. Não acho que o carro-chefe da cultura seja a sua inventividade ou a capacidade de produzir novos eventos. O que a gente deve fazer é recuperar e dar visibilidade às mais diversas manifestações. E pra isso a gente precisa ter uma esquipe multidisciplinar bem formada e motivada
– O cinema, um setor tão complexo por exigir alta soma de recursos, teve uma conquista expressiva, com a resolução que garantiu repasse manutenção de 3% de valores disponíveis para incentivo por meio de estatais e a consequente continuidade do programa. A classe comemorou a conquista.
– Primeiro há de se ter a compreensão de que o cinema, por ser uma arte industrial, é caro. E naturalmente no corpo do Estado há uma série dificuldades com as quais você se depara quando se propõe a tratar de uma política de desenvolvimento para determinado setor da produção cultural. No caso do cinema foi sim uma conquista da Lei de Fomento do Cinema Paulista, mas tudo isso ainda está longe de se estabelecer para o que é potencialmente demandado.
No fundo o Brasil não consegue ter uma compreensão clara sobre a economia criativa. Resta a visão de que o artista ainda é ser um pedinte, de que ainda mantem o velho hábito de se agarrar às tetas do Estado. Nesse momento, principalmente, essa crise econômica, que tem sido uma barra pesada generalizada, tem contribuído decisivamente para agravar ainda mais esse cenário sombrio, de parcos recursos. O Estado hoje anda fazendo economia de palito.
– A economia criativa como você mencionou é comprovadamente um fator de alavancagem de desenvolvimento econômico. Movimenta cerca de 10 trilhões de dólares no planeta e no Brasil tem potencial para crescer exponencialmente. Por que então ela não deslancha?
— É mais uma das nossas contradições. Claro, há razões que explicam esse desajuste. Vivemos sob o domínio dos lobbies de setores atrasados, que manipulam a ação governamental. E não temos lideranças que compreendam e atendam a esses novos movimentos como a economia criativa, por exemplo. E parece que é algo se irradia por todos os setores da economia.
Veja o setor energético, que vive outra crise que se perde no tempo e ainda deve perdurar muito. Não há uma política projetada para mudar esse cenário. Vivemos em um país solar e, no entanto, não há incentivo governamental para acelerar uma mudança significativa em nossa matriz, a partir da energia do sol e dos ventos. Investimos ainda maciçamente no petróleo, nas termoelétricas. E o que se vê no setor do entretenimento e da criatividade é o mesmo descompasso. A música brasileira, por exemplo, é alardeada nos quatro cantos do mundo como um dos traços mais marcantes da nossa cultura, é um sucesso absoluto. Mas qual é a política de governo destinada a ela? Nenhuma. As coisas no Brasil apresentam uma resistência que vai além do compreensível. E a economia criativa está entravada nesse contexto.
— Você se deparou com um modelo administrativo na secretaria baseado nas organizações sociais. Afinal, esse modelo funciona? Qual o papel delas no desenvolvimento da produção?
— A terceirização por meio das Organizações Sociais de Cultura é a saída possível. Porque você não tem como fazer uma máquina desse porte girar pra atender o que é necessário. Eu hoje sou absolutamente a favor das OSs. O que acontecia é que não havia uma discussão política com elas, não havia meio de integrá-las no processo. Ninguém falava com ninguém, muito menos com o gabinete. Então esse tipo de coisa causou impressões que não correspondem à realidade. No entanto quando a gente começou trocar ideias, ordená-las em um processo de participação ativa as coisas começaram a acontecer. Hoje eu tenho absoluta certeza de que sem as OSs não se faz nada.
– Leis de incentivo à cultura como a Lei Rouanet têm sido muito criticadas basicamente por transferir a decisão sobre a alocação de recursos para o setor privado, quando não de servir como fator de barganha pelo poder vigente. Como coadunar incentivos fiscais dentro de uma política de produção cultural?
— Pois é. Eu acho que sem incentivos nós vamos regredir à idade da pedra. Normalmente as pessoas se apegam a certos desvios, fatos pouco nobres da administração pública pra se condenar todo o processo. Uma lei, como a Rouanet, ao contrário, deveria ser muito bem-vinda e ao fim deveríamos nos debruçar sobre ela a fim de aprimorá-la. Cabe ao Estado por sua vez ordenar e estimular incentivos à cultura. Porque boa parte do setor privado ainda prefere pagar o imposto integral ao Estado em vez de destiná-lo à produção cultural. Um recurso legítimo, de acordo com a lei, que bem aplicado poderia promover um ciclo virtuoso. Porque um aporte significativo, além de fazer a roda econômica girar, contribuiria imensamente para enriquecer o nosso imenso patrimônio cultural, tão diversificado e complexo.
– A partir de sua experiência na SEC o que é possível produzir na Câmara Federal para destravar mecanismos de apoio a uma área sempre tão escanteada como a cultura?
– Primeiro passa pela discussão da grana. É um verdadeiro delírio imaginar que 1% do orçamento possa fazer frente à demanda de um vastíssimo universo como é setor cultural do país. Assim travar uma luta no parlamento e convencê-los de que o país é vocacionado para a cultura –e que isso gera trabalho e renda – é escalar uma montanha. Depois temos a discussão tão ou mais relevante que é o acesso à cultura. Eu reconheço o trabalho do rádio e da televisão, mas é pouco. Quando estive na Câmara, eu produzi comemorações de três centenários. O centenário de Luiz Gonzaga, de Vinícius De Moraes e de Caymmi. Foram três sessões de culto à memória dessas três legendas da música e da poesia brasileira. Tudo para chamar a atenção para essa parte da cultura, da memória, enfim, da nossa vida cultural. Gosto sempre de citar uma frase maravilhosa de Ferreira Gullar: “a arte existe porque a vida não basta”. E a sociedade é reconhecida justamente pelo trabalho de seus artistas. O grau de civilidade se revela por meio do trabalho deles. E nesse momento de barbárie em que vivemos, é absolutamente importante que se faça o país acordar pra isso.
— Sobre sua observação sobre essa produção chegar na ponta da linha, ao público. Você acha que iniciativas como o Programa de Cultura do Trabalhador e o Vale-Cultura têm relevo no conjunto de uma política cultural?
— Todas essas iniciativas contribuem. Mas falta uma ação conjunta, multidisciplinar. Precisamos levar os colégios públicos para as salas de cinema, aos teatros, concertos, mostrar pra meninada esse outro lado, que o que toca no rádio não é tudo. Há outras opções. Eu me preocupo muito com fato de a produção cultural do Brasil não chegar às pessoas. A maioria do povo brasileiro nunca foi ao cinema, muito menos ao teatro. Que país é esse? O mesmo se dá com a literatura, ninguém lê. Isso é uma tragédia brasileira, dentre tantas outras.