O Ministério da Agricultura prepara uma medida provisória para estabelecer a fiscalização por autocontrole de produtos de origem animal e vegetal, fertilizantes, medicamentos veterinários, ração, sementes e insumos em geral. O objetivo é tornar obrigatória a implantação de programas de autocontrole, mais amplos do que os sistemas de controle de qualidade já exigidos.
O Valor obteve acesso à minuta da proposta, que está sendo discutida com o setor privado. Uma das novidades é a criação de um programa de incentivos para estimular mais transparência e fluxo de informações das empresas. A ideia é que, por meio de um sistema de rating de adesão voluntária, as melhores classificadas recebam um “atendimento prioritário” do Ministério da Agricultura. Em troca, as companhias terão de oferecer mais detalhes do que no autocontrole padrão, como disponibilizar as análises de controle de qualidade à fiscalização.
A proposta tem potencial para gerar polêmica. Em tese, empresas com maior poder de investimentos poderiam sair na frente em processos como o de habilitação para exportação – esse já é um tema que gera discórdia, como o conflito entre os frigoríficos que queriam ser habilitados pela China, no ano passado, escancarou.
Além do atendimento prioritário em habilitações, as companhias bem classificadas no sistema “Agrocontrole” terão ritos simplificados na emissão de certificados e aprovações regulatórias, indica uma apresentação feita na semana passada pela Secretaria de Defesa Agropecuária, na 4ª reunião do Comitê Técnico Permanente de Programas de Autocontrole.
Meta da ministra Tereza Cristina, a fiscalização por autocontrole é discutida desde abril do ano passado por esse comitê, formado pelo governo e entidades do setor produtivo e industrial. O ministério ainda avalia o melhor momento para publicar a medida provisória ou até se vai optar por transformá-lo em projeto de lei para análise do Congresso.
Com o autocontrole, as companhias serão obrigadas a atender critérios mínimos, ampliando as responsabilidades do setor privado. Na indústria de carne, por exemplo, o controle de temperatura nas câmaras frigoríficas poderá ser de responsabilidade das empresas, e não mais do Estado, explicou uma fonte do setor.
Mas a regulação detalhada ainda não foi definida. Prazos e requisitos específicos para cada segmento virão depois, em normas complementares, para dar tempo à adequação. A implantação do programa também poderá ser auditada por certificadora.
“O ministério não vai sair da inspeção e fiscalização, o poder de polícia continua”, explica José Guilherme Leal, secretário de Defesa Agropecuária do ministério. Segundo ele, a ideia de ampliar autocontrole é aumentar a confiança entre setor privado e setor público.
“Posso, de acordo com o risco estabelecido, ter uma abordagem de fiscalização diferenciada. Se é uma empresa que implantou o autocontrole, fornece as informações e eu verifico que as análises e monitoramentos estão de acordo, posso espaçar as minhas verificações físicas, porque tenho outra forma de verificação”, acrescentou Leal.
O objetivo é ter informações em tempo real para um monitoramento cada vez mais remoto. “A tendência é que não tenha, com o tempo, tanta autuação. Isso vai ser mais no foco onde tem os problemas”, avaliou o secretário. Com a “responsabilização maior” das empresas, ele aposta na redução de erros e na transformação da “mão” do Estado na fiscalização, com mais inteligência e análise de históricos de dados.
Para isso, será preciso desenvolver uma plataforma complexa para recebimento e processamento de dados, além de mecanismos para detectar riscos e emitir alertas para a necessidade de fiscalizações in loco das empresas. O sistema deve ser parecido com o da Receita Federal. O custo total é próximo a R$ 15 milhões. Parte do valor será custeado com os recursos de um convênio assinado pelo Ministério da Agricultura com o Banco Interamericano para o Desenvolvimento (BID).
Para o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais Federais Agropecuários (Anffa Sindical), a proposta é positiva, mas ignora as limitações de pessoal, orçamento e de tecnologia necessários para dar esse salto no sistema de fiscalização.
Um relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) de 2018 apontou que o sistema de tecnologia da informação do Ministério da Agricultura é enquadrado como inicial, abaixo da média da Esplanada, que é intermediário. O documento diz que a Pasta tem problemas como sistemas meramente cadastrais, tecnologia obsoleta e erros nas funcionalidades. “A gente não vê o ministério preparado para isso”, afirmou o diretor de Política Profissional do sindicato dos fiscais, Antônio Andrade.
A presença permanente de fiscais nos estabelecimentos de abate, no entanto, deve ser mantida. Os auditores continuarão responsáveis pelas inspeções “ante e post-mortem” dos animais. Com isso, o ministério reforça que não haverá impacto nas relações internacionais. Sensível, o tema gera expectativas nos importadores de carnes. O Valor apurou que o simples início das discussões, ainda no ano passado, motivou um pedido de informações dos Estados Unidos sobre as mudanças que o Brasil estaria propondo.
“Para a inspeção, não tem nenhum impacto que venha a comprometer [o acesso ao mercado internacional] e o que temos de reconhecimento do nosso serviço no mercado”, defendeu Leal.
Fonte: Valor Econômico