A ONU divulgou globalmente nesta segunda-feira (9) seu relatório de Desenvolvimento Humano. O documento de 366 páginas alerta para a necessidade de se combater as novas formas de desigualdade no mundo – ligadas, por exemplo, ao acesso desigual a avanços tecnológicos e ao impacto das mudanças climáticas – para responder aos crescentes protestos sociais pelo planeta.
Além disso, a divulgação traz o novo ranking dos países classificados a partir do seu Índice de Desenvolvimento Humano, o IDH, sigla que se tornou conhecida como um parâmetro de bem-estar da população.
O relatório deste ano mostra que a longa crise econômica que o Brasil atravessa desde 2014 tem comprometido o avanço do país. O IDH brasileiro ficou praticamente estagnado em 2018, depois de ter apresentado baixo crescimento nos anos anteriores.
Com isso, aponta o documento, o país perdeu três posições no ranking global em comparação com 2013, aparecendo como a 79ª nação com melhor resultado no mundo.
O IDH varia de 0 a 1. Quanto mais próximo de 1, melhor é a situação de um país. Em 2019, a Noruega manteve a liderança mundial com pontuação de 0,954. Na última posição entre os 184 países analisados está mais uma vez o Níger (0,377).
O Brasil aparece em 2018 com 0,761, resultado praticamente estável ante 2017 (0,760). Já em 2013, nosso índice era de 0,752.
Essa pontuação reflete o desempenho do país em quatro indicadores: esperança de vida ao nascer; expectativa de anos de estudo; média de anos de estudo (da população até o momento); e renda nacional bruta per capita (toda a renda do país dividida pelo número total da população)
O avanço da pontuação brasileira em relação a 2013 se deve a continuidade da melhora dos três primeiros indicadores. Por outro lado, o reflexo da crise econômica na renda da população impediu um avanço maior. Segundo o IBGE, há 12,5 milhões de brasileiros desempregados, o que representa quase 12% dos trabalhadores.
“O que não tem contribuído para o aumento do IDH no Brasil é a parte econômica, porque tem havido uma estagnação desde 2014, 2015. Esperando que a melhora da educação e da saúde se mantenha no futuro, a partir do momento em que a economia se recupere, o IDH do Brasil pode vir a crescer mais rapidamente”, disse à BBC News Brasil o economista português Pedro Conceição, diretor do escritório da ONU que produz o relatório.
Conceição considera positivo, porém, o fato de o Brasil seguir em uma trajetória de melhora. “Embora o IDH esteja crescendo pouco nos últimos anos, continua a aumentar”.
Segundo o novo documento da ONU, a esperança média de vida dos brasileiros ao nascer estava em 75,7 anos em 2018, contra 73,9 em 2013 – uma ganho de quase dois anos. Já a expectativa de anos de estudo passou de 15,2 para 15,4 no período, enquanto a escolaridade média evoluiu de 7,2 anos para 7,8.
A renda média do brasileiro, no entanto, recuou de US$ 14.275 para US$ 14.068 nessa meia década.
Vale explicar que a ONU utiliza o dólar internacional em paridade de poder de compra para estimar a renda nos países, fazendo uma comparação entre preços de produtos e serviços em diferentes países e nos Estados Unidos – é uma mediação considerada mais adequada para comparar o bem-estar em diferentes países e não representa a mesma cotação do dólar americano.
Nesses parâmetros, a renda média brasileira fica próxima da mundial (US$ 15.745) e da latino-americana (US$ 13.857). Já o grupo de países com IDH muito alto (a partir de 0.8), composto de 62 nações, tem renda média de US$ 40.122, também em paridade de poder de compra.
Enquanto o Brasil apresenta um desempenho mais modesto, o ranking evidencia a piora do IDH da Venezuela, país que enfrenta uma crise humanitária, com forte onda migratória.
Em cinco anos, o país caiu 26 posições no ranking para o 96º lugar. Sua pontuação ficou em 0.726 em 2018 contra 0.772 em 2013.
Alta desigualdade reduz desenvolvimento humano brasileiro
O Brasil está na categoria de “alto desenvolvimento humano” e tenta chegar à mais elevada no ranking, o grupo com “muito alto desenvolvimento humano”.
Na comparação com os demais países do seu atual grupo, o Brasil tem apresentado ritmo de crescimento do IDH menor que a média de 2010 para cá. No entanto, o avanço brasileiro tem sido melhor do que a média de América Latina e Caribe.
A ONU ressalta, porém, que a desigualdade social ainda elevada faz com que os níveis de desenvolvimento variem muito dentro do Brasil.
O IDH é uma média dos indicadores do país – ao ajustá-lo pela disparidade de renda e de acesso à saúde e educação, o organismo considera que a pontuação brasileira recua para 0,574. Como a desigualdade brasileira está entre as mais altas do mundo, esse ajuste derruba o país em 23 posições no ranking.
Além das ‘médias’
Um dos temas do relatório desse ano é justamente destacar que as “médias” escondem muitas desigualdades pelo mundo. Nesse sentido, a ONU chama atenção para a lentidão da redução do fosso entre homens e mulheres no mundo.
Após uma queda relevante entre 1995 e 2010, a disparidade de gênero – medida por meio de indicadores de saúde, educação, inserção no mercado de trabalho e participação política – tem recuado mais lentamente na última década, segundo o relatório.
A seguir no ritmo atual, levaria 202 anos para que mulheres tenham as mesmas oportunidades econômicas que homens, por exemplo.
O relatório destaca que houve avanços importantes nas últimas décadas, como o aumento do acesso de meninas à educação e o combate à violência de gênero por meio de movimentos como #MeToo e #NiUnaMenos, mas enfatiza a ainda baixa presença feminina em cargos de comando na política e as mobilizações de contestação ao feminismo como a campanha contra uma suposta “ideologia de gênero”.
“Há sinais preocupantes de dificuldades e reversões no caminho da igualdade de gênero, para (o aumento das) chefes de estado e de governo e para a participação das mulheres no mercado de trabalho, mesmo onde há uma economia dinâmica e paridade de gênero no acesso à educação”, diz um trecho do relatório.
“E há sinais de reação (aos avanços conquistados). Em vários países, a agenda de igualdade de gênero está sendo retratada como parte da ‘ideologia de gênero'”, continua o documento.
Novas desigualdades, novas políticas
O documento chama atenção para os riscos criados devido às rápidas mudanças tecnológicas e ambientais que o mundo atravessa. Segundo Pedro Conceição, há dois canais pelos quais as alterações climáticas podem aprofundar as desigualdades no mundo. Um deles são os desastres naturais, como secas intensas ou inundações.
“É bastante claro que as comunidades mais vulneráveis, mais pobres, estão mais expostas (aos impactos desses desastres)”, alerta.
Outro canal é a dependência mais direta dos recursos naturais. “Muitas das populações mais vulneráveis dependem da natureza para suas vidas, para sua atividade econômica. Não há outra forma de viver. Por exemplo, as comunidades agrícolas. Estão muito expostas às alterações climáticas”, acrescentou.
Conceição destaca que nas últimas décadas um contingente importante de pessoas superou a fome, pobreza e à vulnerabilidade a doenças. No entanto, ressalta a importância do acesso a níveis mais altos de escolaridade e à tecnologia para o combate às novas desigualdades.
A ONU destaca que nos países de IDH mais elevado (acima de 0.8) as assinaturas para internet de banda larga cresce 15 vezes mais rápido do que em países de baixo desenvolvimento humano. Já o acesso ao Ensino Superior avança seis vezes mais rápido.
Em um momento em que de alastram protestos em diversas partes do mundo – dos Coletes Amarelos na França, passando pelos estudantes em Hong Kong, às manifestações em série por países sul-americanos -, o relatório da ONU chama atenção para a necessidade de novas políticas públicas contra as desigualdades.
Ressaltando que as diferenças de oportunidades começam desde antes do nascimento, o documento defende que os governos invistam mais “na aprendizagem, saúde e nutrição das crianças pequenas” para garantir maior igualdade de condições desde a primeira infância.
A ONU também urge o governo a regular mercados com políticas antitrust que garantam “competição saudável”, além de proteger os diretos dos trabalhadores.
“Os países com uma força de trabalho mais produtiva tendem a ter uma concentração mais baixa de riqueza no topo, viabilizada, por exemplo, por políticas que apoiam sindicatos mais fortes, estabelecem o salário mínimo certo, criam um caminho da economia informal para a formal, investem em proteção social e atraem mulheres para o local de trabalho”, diz o documento.
Outro ponto importante para a ONU é que os países direcionem sua política fiscal (recolhimento de tributos e gastos públicos) para a redução das desigualdades.
“A tributação não pode ser vista por si só (ou seja, como mera finalidade de arrecadação), mas deve fazer parte de um sistema de políticas, incluindo gastos públicos em saúde, educação e (para incentivar) alternativas a um estilo de vida intensivo em carbono”, aponta o documento.
Nesse campo, a organização também destaca a “importância de novos princípios para a tributação internacional”, tendo em vista o avanço da digitalização e dos riscos que isso representa para a evasão fiscal (manipulação para pagar menos imposto).
Fonte: BBC