Fabiana França tem 41 anos. Desde os 13, vive do mar e da “coroa”, como ela chama o recife de coral da Ilha de Maré, localidade de Salvador que fica no meio da Baía de Todos os Santos. Com seu trabalho na mariscagem, sustenta sozinha duas filhas, de 18 e 13 anos.
Quando a maré baixa, seja dia ou seja noite, Fabiana cata os animais que vende às barracas de praia e banhistas da localidade. Para o último final de semana, conseguiu 12 quilos de siri catado e sarnambi. Agora, está com os mesmos 12 quilos dentro do freezer.
- Danos do óleo no litoral do Nordeste vão durar décadas, dizem oceanógrafos
- ‘O mar é minha vida, não posso ver esse horror e fazer nada’: os voluntários na luta contra o óleo no Nordeste
“Ninguém compra nada. Nada. É um desespero. Eu preciso botar comida em casa, alimentar minhas filhas. Vou ter que comer esse marisco. Vou jogar fora? Não. Mas ninguém quer. O mar é um só, né?!”, questiona Fabiana, como quem fala consigo mesma.
A indagação sobre o mar tem motivo: a Ilha de Maré, ao menos oficialmente, não foi atingida pelo óleo que já alcançou 200 localidades do litoral nordestino, segundo o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
Ainda assim, aquela comunidade pesqueira já sente os efeitos da baixa do consumo, causada pelo temor que se tem em relação à toxicidade do derivado de petróleo.
Com os 12 quilos que pretendia vender no final de semana, Fabiana poderia ganhar até R$ 360. Sem a renda, conta apenas com a ajuda da mãe. Esta vive da aposentadoria, depois de trabalhar a vida inteira como marisqueira.
“Eu vivo disso, só sei fazer isso. Não quero que minhas filhas entrem nisso porque elas estão estudando. Naquela ilha, só se vive de pesca. Quero outra coisa pra elas”, diz Fabiana.
Drama de centenas
Nesta terça-feira (22/10), Fabiana participou de uma manifestação de pescadoras, pescadores e marisqueiras que ocupou durante parte do dia a sede do Ibama em Salvador.
Aproximadamente 300 trabalhadoras e trabalhadores do mar, de diferentes praias da Bahia, se juntaram na capital para expor o drama de quem está no meio de uma engrenagem de auto-sustentação paralisada pelo maior desastre ambiental da história da costa brasileira.
Com um detalhe: boa parte dos relatos ali enfileirados é como o de Fabiana. Gente que já sente o prejuízo antes mesmo de sua praia entrar na lista oficial da catástrofe.
“Pra a gente o óleo ainda não chegou, mas a consequência já chegou. Esse mar é nossa indústria, nosso polo, nosso comércio, nosso tudo. Abaixo de Deus é o manguezal e o mar”, diz Crispin dos Santos, de 44 anos, pescador da localidade de São Francisco do Paraguaçu, que pertence à cidade de Cachoeira, no Recôncavo baiano.
Ali, aponta Crispin, são cerca de mil famílias que vivem quase exclusivamente da pesca. Agora, quem já tinha tirado algo do mar ou do mangue está com os estoques abarrotados. Quem ainda iria pescar nem sai mais.
No caso dele, que costuma sair para as águas com mais 12 pescadores para arriar uma rede grande, a conta é mais palpável: neste momento, são 13 famílias sem ter de onde tirar o sustento.
“Nem o atravessador quer nosso marisco. E olhe que a gente já passa a preço de banana. Quem tem peixe tá em tempo de perder tudo. E não tem pra onde a gente ir nessa situação aí de desemprego do país. Como é que vai achar trabalho?”, observa Crispin.
“Eu tô com uns 2 mil reais estragando no freezer”, brada, a seu lado, Josemar de Jesus, também morador da Ilha de Maré. “Tem cavala, pescada, tainha e siri, mas não vende”, emenda.
Nas condições normais de trabalho, Josemar faz o estoque a semana inteira para vender aos finais de semana, assim como Fabiana. Após o fantasma do óleo, ele está com contas penduradas nas mercearias da localidade. “É na base da confiança, não tem outro jeito.”
Óleo chega ao sul da Bahia
Nos últimos dias, quem também foi obrigado a “comprar fiado” foi Nildo Sacramento, que fecha o rosto só de tocar no assunto.
“Nunca devi nada a ninguém. Sustento minha família a vida inteira com a pesca do robalo e produção de ostra. Agora, com esse óleo aí que tá acabando com nossa vida, tô pedindo dinheiro emprestado a parente e deixando conta nas vendinhas”, lamenta.
Nildo mora em Taperoá, no sul da Bahia. Os principais compradores de seu pescado — que agora estão rejeitando os produtos — são restaurantes de dois polos turísticos famosos nacional e internacionalmente: Boipeba e Morro de São Paulo.
Pertencentes ao município de Cairu, os dois locais foram oficialmente tocadas pelo óleo na madrugada desta terça. Em Morro de São Paulo, terceiro destino do turismo da Bahia, atrás somente de Salvador e Porto Seguro, a prefeitura chegou a interditar duas praias, que foram liberadas após a limpeza. Ao todo, 1,5 tonelada de óleo foi retirada das praias de Cairu.
“Isso chegou na areia agora, mas a gente, que tá no mar, já vê vestígio desse óleo faz tempo. E os pescados lá da região ninguém compra há uns 15 dias. Ninguém. E olhe que, na mídia, esse óleo de Morro de São Paulo só chegou agora”, diz Nildo.
A conta que não fecha
Enquanto ocorria a ocupação em Salvador, o secretário de Aquicultura e Pesca do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), Jorge Seif Júnior, anunciava em Brasília que o governo vai pagar em novembro uma parcela do seguro-defeso para 60 mil pescadores artesanais afetados pelo vazamento de óleo no litoral do Nordeste.
Segundo Seif Júnior, R$ 59,9 milhões serão destinados para o pagamento. “O pescador pode ficar tranquilo, não precisa de nenhum ato, simplesmente aguarde que estamos construindo e, dentro do mês de novembro, será depositada em sua conta, a mesma em que ele já recebe o seguro-defeso, uma parcela do benefício”, afirmou.
O seguro-defeso, no valor de um salário mínimo, é o benefício que os pescadores recebem quando têm de suspender a atividade durante o período de reprodução de determinada espécie. O recebimento pode durar de três a cinco meses por ano, a depender da região e da espécie.
A conta deste anúncio, no entanto, não fecha. De acordo com dados do próprio ministério, existem mais de 140 mil pescadores registrados nas cidades já oficialmente atingidas pelo óleo — que segue chegando a novas localidades.
Além disso, existem casos como os expostos na ocupação do Ibama, de pescadores que não vivem em praias atingidas, mas estão igualmente afetados pelo desastre. Assim, o pleito dos pescadores da Bahia é que seja criado um benefício específico para a emergência trazida pelo derrame do óleo.
“Essa conversa de antecipar seguro-defeso é um absurdo, é achar que todo mundo aqui é burro. Tá antecipando algo que já é direito do pescador. Esse óleo não tem nada a ver com isso, tem que ser um pagamento a parte”, diz Maria José Pacheco, representante da Pastoral da Pesca, vinculada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
A BBC News Brasil entrou em contato com o Mapa na noite de terça, mas, de acordo com a assessoria de comunicação da pasta, devido ao horário, não seria possível responder aos questionamentos sobre a discrepância entre os benefícios anunciados e a quantidade de pessoas atingidas. Caso essas respostas sejam enviadas, esta reportagem será atualizada.
Representando a Defensoria Pública da União (DPU), o defensor regional de Direitos Humanos substituto da Bahia, André Porciúncula, esteve na ocupação do Ibama e prometeu aos pescadores que vai negociar, junto ao Mapa, a extensão do pagamento para todos os afetados pelo desastre, independentemente das localidades em que vivam.
“O objetivo primeiro é sentar para conversar e tentar resolver administrativamente. Se não for possível, a DPU vai entrar com uma ação judicial”, afirmou.
Emergência sanitária
Também presente na ocupação, o professor Paulo Pena, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (Ufba), chamou atenção para os riscos a que estão submetidos todos os pescadores que atuam em áreas tocadas pelo óleo.
“Essas pessoas podem vir a desenvolver doenças graves e crônicas. São trabalhadores que ficarão anos em áreas contaminadas por uma substância muito tóxica, na água e dentro dos mangues, num ofício que ultrapassa gerações. Pela quantidade de óleo que já vimos, temos um sério risco de epidemias”, afirmou Pena, que coordena há 12 anos uma pesquisa focada na saúde ocupacional e ambiental dos pescadores artesanais.
Na última segunda-feira (21), a BBC News Brasil publicou reportagem mostrando que a estimativa de especialistas é que a contaminação causada pelo derivado de petróleo dure décadas.
Na visão de Paulo Pena, o Brasil está diante de um caso de emergência sanitária. “Esses pescadores precisam de um seguro ocupacional, porque eles só deveriam atuar nessas áreas depois de um monitoramento minucioso, que mostrasse que não há mais contaminação, mas isso pode levar muito tempo”, concluiu.
Nesta crise, o primeiro registro de óleo na costa brasileira ocorreu na Paraíba, no dia 30 de agosto. Após quase dois meses, ainda não se sabe a fonte ou a data do derramamento, assim como a quantidade de óleo que foi lançada no mar. Por isso, é impossível prever quando as manchas vão parar de surgir nas praias.
Responsável pela investigação ainda sem respostas, a Marinha contabiliza 900 toneladas de óleo já recolhidas no litoral do Nordeste.
Fonte: EL País