A longo prazo estaremos todos mortos. Essa frase, atribuída a lorde Keynes, é verdadeira. Mas prefiro ficar com as dimensões de tempo descritas pelo grande historiador Fernand Braudel: o tempo imediato é local, a convergência de fatos que produzem uma nova conjuntura é a extensa linha do longo prazo. Naturalmente, estaremos todos mortos, mas existe uma linha de longo prazo e devemos interrogá-la para definir uma estratégia.
No meu entender, a vitória de Bolsonaro é uma convergência de fatos que produziu uma nova conjuntura. Mas continuo achando que na linha do tempo, no longo prazo, o Brasil não pode fugir de seu destino de detentor de grandes riquezas naturais que são um trunfo econômico e diplomático.
O governo Bolsonaro foi eleito pela maioria, de forma democrática. Alguns de seus ministros, Agricultura e Meio Ambiente, consideram que o controle ambiental sobre a produção é coisa de comunista fantasiado de defensor do meio ambiente. Melancias, verdes por fora, vermelhas por dentro. O chanceler Ernesto Araújo classifica o aquecimento global como uma invenção do marxismo globalizante.
Isso não corresponde à realidade. Eles não conhecem um país comunista. Não visitaram o Leste Europeu, não viram a devastação ambiental deixada pelo regime. Os desastres por lá, a julgar por Chernobyl, eram piores que os nossos. Aqui, contaminamos com lama e minério dentro de nossas fronteiras. As usinas nucleares espalham a radiação por todo o continente, às vezes além dele.
Os ministros de Bolsonaro ignoram até o debate nacional. Em 2003, quando saí do PT, afirmei que o partido tinha uma visão ambiental atrasada e replicava a visão dos velhos partidos comunistas. A ideia dos antigos quadros era de que o essencial era o crescimento econômico, a melhoria de condições dos trabalhadores. Era preciso competir e vencer o Ocidente.
Por mais que Bolsonaro deteste os comunistas, nada se parece mais com eles do que suas posições sobre crescimento e meio ambiente. Na realidade, seu ponto de partida é diferente. Bolsonaro defende a propriedade privada e acha que está sendo tolhida pelo controle ambiental. Pelo menos é isso que depreendo de seus discursos de campanha.
A defesa da propriedade privada é uma boa causa. No entanto, ela tem nítidos limites. Um rio que passa na sua fazenda não pode ser usado de qualquer maneira. Há pessoas a jusante, comunidades que dependem dele.
Por causa disso, afirmamos em lei que os rios são de responsabilidade dos Estados ou do governo federal. E criamos um instrumento democrático para geri-los: o comitê de bacia, no qual os usuários são também representados.
Seria fácil descartar a visão de Bolsonaro e seus ministros, afirmando só que ignoram os fatos. Eles, ao que parece, têm uma visão de longo prazo. Acreditam que o meio ambiente pode ser explorado com menos limites se avançamos em ciência e tecnologia. É uma suposição muito frequente a de que as principais tarefas da natureza podem ser substituídas por descobertas científicas. Ainda que isso fosse possível, estaríamos construindo uma civilização solitária, a mais solitária que existiu até hoje, dispensando plantas, animais, fontes de água limpa.
No meu entender, a linha decisiva de longa prazo vai prevalecer. Governos passam. E ainda que não passassem (há os que duram demais), a realidade acabará por se impor.
Os exemplos estão aí. Dilma fazia um governo próximo do marxismo. Mas após o desastre de Mariana ela não mandou fechar as barragens existentes nem proibiu as que são construídas a montante. O governo Bolsonaro, que odeia ecologistas e acha que o controle ambiental deveria ser relaxado em nome da produtividade e do respeito à propriedade privada, fez exatamente o que o chamado marxismo não fez: proibiu as barragens a montante e deu um prazo para que fossem esvaziadas.
Isso foi depois de Brumadinho. Mas não desmonta o argumento de que os fatos acabam produzindo uma aproximação do que chamo de linha estratégica de longo prazo.
O ministro do Turismo de Bolsonaro compreendeu também que a melhor tática para salvar Brumadinho é estimular o turismo, sobretudo o baseado no grande museu a céu aberto de Inhotim. Na verdade, o museu é só uma das atrações da área, rica em águas, no pé da Serra do Rola-Moça, com grandes pedaços de Mata Atlântica ainda preservados.
Ao desenvolver essas ideias, não quero dizer que exista uma história pré-escrita, nem aconselhar que as pessoas cruzem os braços e deixem de lutar por melhores condições ambientais. Ao contrário, quero dizer apenas que existem fortes tendências determinadas por nossa rica biodiversidade que abrem um caminho para o Brasil num mundo assustado com a degradação planetária.
Não importa tanto, aqui, se o ministro gosta de laranjas ou tangerinas, neste caso específico o importante é que faça a coisa certa. Não importa, ainda, se Bolsonaro atribuiu ao PT a defesa de nosso meio ambiente ou se o chanceler confere ao marxismo a constatação de que o planeta esquenta de forma perigosa. Karl Marx compartilhava o otimismo burguês com a exploração ilimitada dos recursos naturais.
Quem vai conter a realidade quando ela se revela em eventos extremos, furacões e tempestades, quando a barragem mineral desce na forma de um tsunami de lama? Não tem nenhuma importância que continuem a combater um comunismo desenhado na cabeça deles, nem mesmo que nos mandem prender por criticá-los com acidez. Conjunturas, convergência singular de alguns fatos, são ebulições que nos deixam pensar tudo, sobretudo fantasiar a realidade como um produto de nossa ideologia. Mas a longa linha do tempo, as grandes tendências históricas acabam nos trazendo ao mundo concreto.
Esta é minha interpretação livre da visão de tempo de Braudel. Não sei se ele autorizaria minha tosca leitura. Pelo menos estou lendo e tentando entender.
Artigo publicado no Estadão em 22/02
Fonte: Gabeira.com