Joenia Wapichana critica mudanças em demarcações sob Bolsonaro e defende respeito à Constituição.
TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL (RR)
A partir de fevereiro, a advogada Joenia Wapichana, 44, ocupará o gabinete 231 da Câmara dos Deputados. O número, escolhido por ela, é o mesmo do artigo da Constituição que assegura aos povos indígenas os direitos sobre suas terras tradicionais.
No Congresso, o texto constitucional será a principal arma de Joenia contra as ameaças do governo Jair Bolsonaro (PSL) de paralisar e de reverter demarcações, além de permitir arrendamento e mineração em terras indígenas.
Um dos alvos é a terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, que Bolsonaro tem prometido devolver aos fazendeiros brancos e abrir para a exploração mineral. A demarcação, no entanto, já foi ratificada pelo STF, durante processo em que Joenia atuou como advogada do CIR (Conselho Indígena de Roraima).
Indicada a se candidatar pela assembleia indígena de Roraima, Joenia saiu pela Rede e fez a campanha direcionada aos eleitores das diversas etnias do estado. As promessas incluem a criação de um sistema próprio de educação e melhoras na rede de saúde.
A seguir, a entrevista concedida à Folha durante visita à Raposa Serra do Sol, uma de suas principais bases eleitorais, na quinta-feira (3).
Os primeiros dias do governo Bolsonaro foram marcados por mudanças profundas na política indigenista. Qual é a sua avaliação desse início? ?O governo está retrocedendo em uma série de avanços na implementação dos direitos dos povos indígenas, principalmente aqueles que nos foram garantidos pela Constituição de 1988 sobre o reconhecimento das terras.
Quando se tiram, por medida provisória, a identificação, a delimitação e a demarcação da responsabilidade da Funai, isso é um retrocesso das políticas públicas. Criou-se um órgão com preparo técnico qualificado, específico para a questão indígena, para não ser manipulado por grupos de interesse.
A lei colocou essa responsabilidade na Funai para proteger os interesses coletivos dos povos indígenas, para ter as terras garantidas, respeitadas e protegidas, longe de interesses individualistas econômicos, de influências e de posicionamentos políticos.
Bolsonaro afirmou que os indígenas são manipulados e explorados por ONGs. Isso ocorre? ?Durante muito tempo, os povos indígenas tiveram uma política voltada à colonização forçada. Colonização também pode significar manipulação. Vejo uma contrariedade quando ele diz que somos manipulados. Tivemos o reconhecimento, a partir da Constituição, de opinar, de buscar direitos.
Hoje, a gente está assumindo espaços. Sou prova disso, mas também há várias outras lideranças no país plenamente conscientes dos seus direitos.
Não precisamos de uma ONG ou de qualquer órgão pra dizer o que temos de fazer, porque entendemos os nossos direitos. As ONGs são nossas parceiras, e o próprio governo pode ser o nosso parceiro também se parar de ficar brigando com a gente.
A gente simplesmente reivindica a demarcação de terras indígenas e o respeito ao direito à consulta prévia. Isso é lei, o país já confirmou. Estamos apenas exercendo os direitos como cidadãos.
Bolsonaro tem afirmado que os índios vivem como em zoológicos nas terras indígenas.? Com certeza, não. Não sei de onde ele tira essas coisas. A gente já passou por isso antes, quando foi homologada a Terra Indígena. Na época, o governo de Roraima disse que era um zoológico humano, como se a terra indígena fosse uma prisão para que, demarcada, os índios ficassem lá no cantinho.
Isso tem um sentido de discriminação. O que ele quer dizer com isso? Que somos animais irracionais, que não conhecemos os nossos direitos? A terra indígena é uma prisão? Não é isso. A terra indígena é simplesmente uma residência, o nosso direito à terra demarcada. Mas isso não nos retira o direito de sermos cidadãos brasileiros, de ir e vir.
O general Heleno, um dos principais assessores de Bolsonaro, afirmou que as demarcações representam um ameaça à soberania nacional. ?Isso é matéria superada. Traz de volta um discurso de desconhecimento legal. Como foi bem dito durante o julgamento da Raposa Serra do Sol pelo ministro Carlos Ayres Britto [do STF], não existe choque de interesses numa terra indígena em área de fronteira com a defesa nacional.
Os povos indígenas foram essenciais na definição dos limites do território brasileiro. Nesta região onde estamos, temos provas da passagem do marechal Rondon. Faziam parte de sua comitiva lideranças indígenas que ajudaram na definição dos limites dos territórios brasileiros.
A legislação deixa bem claro que as terras indígenas são patrimônio da União, está no artigo 20 da Constituição. São terras públicas. Os povos indígenas têm a posse exclusiva, mas quem tem o domínio do patrimônio é a União.
É um discurso que coloca os povos indígenas como inimigos de uma sociedade brasileira. Pelo contrário. Somos os principais guardiões da fronteira. Somos protetores dos recursos naturais, dos rios. Seria uma crueldade incitar o ódio, a intolerância, um clima de racismo contra os povos indígenas.
O presidente afirma que a demarcação atrapalha a exploração mineral da Raposa Serra do Sol, que seria a terra mais rica do mundo. ?Para os povos indígenas, a riqueza é quando você tem saúde, terra para viver sem ameaças, estar num clima tranquilo, ter alimentação saudável para a família, ter terra demarcada, uma cultura preservada, uma coletividade respeitada.
Os valores que ele tem são o da cobiça, que vem justamente trazer esse choque da exploração. Ele preza tanto o valor da família, deveria ver o lado indígena também.
O valor da família indígena começa na terra. O valor espiritual é uma riqueza também. Todo mundo só vê a exploração mineral como a riqueza que pode trazer, nunca vê o prejuízo: a divisão, a violência, a influência externa do alcoolismo, a perda da cultura.
Hoje, a terra indígena ianomâmi vive com problemas. A Fiocruz detectou contaminação por mercúrio. A contaminação do meio ambiente, dos rios, não vai só prejudicar os povos indígenas. As águas não ficam paradas, nascem nas terras indígenas, mas vão para a cidade também.
Outra questão é a legalização do arrendamento de terras indígenas, que tem acontecido em algumas regiões. A sra. é favorável? ?É inconstitucional. Se existe um caso ou outro, não é baseado em atos legais. O poder público tem de fiscalizar esses casos. As terras indígenas são de uso exclusivo para prover a sobrevivência física e cultural dos povos.
Para ter o arrendamento, seria preciso mudar nossa Constituição. E não é fácil mudar porque, quando os direitos indígenas foram consagrados, o legislador teve essa preocupação de, no futuro, vir alguém com essa ideia de querer pegar as terras indígenas para arrendamento.
Existe também falta de incentivo aos projetos da comunidade. Depois da homologação, o Estado tem de apoiar produtividade indígena, a sustentabilidade, a fiscalização, no sentido de que a própria comunidade possa ter a sua sobrevivência física e cultural assegurada.
A primeira vez que a sra. viu Bolsonaro pessoalmente foi em uma audiência na Câmara sobre a demarcação da Raposa Serra do Sol, em 2008. O que a sra. lembra? ?Ele fez um discurso bastante inflamado contra a demarcação, dando apoio aos rizicultores. Disse que não entendia como meia dúzia de mal-educados que não falavam português tinham mais direitos do que brasileiros patriotas, mas não me lembro bem das palavras.
Ficamos abismados com o comportamento de um legislador eleito para defender direitos e que tinha uma manifestação tão racista, de ódio. Uma pessoa do Rio de Janeiro falando de demarcação de terras em Roraima e, mesmo assim, tinha discurso contrário.
A sra. será o único representante indígena no Congresso e faz oposição à política de Bolsonaro. Como imagina o trabalho a partir de fevereiro? ?Terei muito trabalho para desmistificar toda essa política que tenta retroceder nos direitos constitucionais. Vou tentar explicar, até mesmo de forma educativa, que é preciso seguir o que já foi aprovado em 1988. Não criar abismos, retrocessos. O sentido é avançar.
Temos de começar a trabalhar o Brasil com essa diversidade rica e bonita que o país tem. A gente tem alternativas para crescer economicamente, e não só prejudicando vidas e povos indígenas.
Por que ele persegue tanto os povos indígenas? Qual é a razão de todo esse ódio e de querer retroceder tanto?
Temos turismo, medicinas tradicionais, uma vasta biodiversidade na Amazônia. A gente tem de mudar esse discurso de que somos empecilho ao desenvolvimento, que estamos prejudicando A ou B. Temos de fazer com que sejamos nós os protagonistas também.
Em 2019, completam-se dez anos da decisão do STF favorável à Raposa Serra do Sol. O que mudou na vida dos indígenas e como a sra. imagina daqui a dez anos? Há um clima de mais tranquilidade para as comunidades indígenas. Tiraram-se as cercas, e hoje se caminha livremente. As comunidades já tomam frente das atividades produtivas, econômicas. Este lugar onde estamos era uma das fazendas indenizadas, e hoje é possível para a comunidade desenvolver seu projeto de criação, de gestão. Estão sendo protagonistas da administração. Está todo mundo nessa agenda de avançar para a sustentabilidade.
Para daqui a dez anos, espero que a gente avance. Quero que esses planos de gestão possam ser implementados e que a gente tenha mais profissionais indígenas. Já avançamos bastante em termos de profissionais indígenas. Ser advogado já não é mais novidade. Já estão estudando mestrado, doutorado. Tem médico, engenheiro, agrônomo. É essa população está vindo é para reforçar a gestão da terra.
Parte das despesas da viagem dos repórteres Fabiano Maisonnave e Avener Prado foi custeada pela ONG Conectas
RAIO-X
Joenia Wapichana, 44
É formada em direito pela Universidade Federal de Roraima, com pós-graduação pela Universidade do Arizona (EUA). Primeira mulher indígena a se eleger deputada federal (Rede-RR), atuou no processo no STF (Supremo Tribunal Federal) que confirmou a homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Em dezembro, recebeu o Prêmio de Direitos Humanos da ONU, que já homenageou o ex-presidente dos EUA Jimmy Carter, o diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello e a jovem paquistanesa Malala Yousafzai
Fonte: Folha