Na noite de ontem (24/4), a plenária de abertura do 14º Acampamento Terra Livre (ATL), maior mobilização indígena dos últimos anos, foi o espaço para o lançamento de um conjunto de documentos sobre a situação dos direitos indígenas no País.
A Relatoria de Direitos Humanos e Povos Indígenas da Plataforma de Direitos Humanos (Dhesca Brasil) reuniu em um só documento três relatórios: o Relatório da Missão ao Brasil da Relatora Especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os direitos dos povos indígenas, o Relatório do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) sobre a situação dos povos indígenas no sul do Brasil e o Relatório da Coalizão de defesa dos Direitos Indígenas para a Revisão Periódica Universal (RPU/ONU).
“Apesar de termos uma constituição protetiva, ela está sob ataque, tanto do Legislativo, como do Executivo e do próprio Judiciário. Esse ataque se materializa na paralisação de demarcação de terras indígenas, na impunidade com relação aos crimes e violências de todos os tipos cometidos contra povos e comunidades indígenas e na crescente criminalização das lideranças e comunidades que resistem e lutam por seus direitos”, afirma Érika Yamada, relatora da Plataforma Dhesca. Ela avalia que há um padrão de graves violações de direitos humanos que o Estado brasileiro ainda precisa reconhecer.
Uma das questões centrais abordadas nos relatórios, todos elaborados com a participação de povos e organizações indígenas, é o forte racismo que persiste contra os indígenas no Brasil.
“Há um racismo institucional, que impede a garantia do acesso à justiça aos povos indígenas, que faz perdurar processos de demarcação sob crescente insegurança jurídica e que deixa impune aqueles que praticam crimes contra as comunidades. Esse racismo que também está na fala de autoridades públicas, quando dizem que os índios e outros grupos não prestam, que terra não enche barriga de índio, quando dizem que o índio não pode ficar parado no tempo, ou que é inútil e preguiçoso, que não haverá terra demarcada, e claro que compara indígenas ou quilombolas a gado”, avalia a relatora.
O cenário político do início de 2017 e as ações contrárias aos povos indígenas adotadas pelo governo Temer também são abordadas no documento, como a Portaria 80 do Ministério da Justiça, publicada em janeiro. A norma cria um Grupo Técnico Especial (GTE) na pasta para analisar os relatórios de identificação e delimitação das terras indígenas produzidos pela Fundação Nacional do Índio (Funai). A portaria foi duramente criticada por indígenas e indigenistas por criar, na prática, uma nova instância com a finalidade de dificultar as demarcações de terras.
Além destes pontos, a publicação analisa ainda a efetivação do direito de Consulta Prévia, Livre e Informada sobre projetos que afetem os povos indígenas, as políticas de saúde, educação e serviços sociais, a atuação da Funai, o acesso dos indígenas à Justiça e o as ameaças representadas por megaprojetos econômicos.
Segregação dos indígenas no Sul
“A situação que encontramos nos três estados da região Sul é muito dramática. É uma situação de confinamento, na qual nem sequer os direitos sociais mínimos, como bolsa-família, estão sendo assegurados aos indígenas. Esse confinamento se dá em locais nos quais os indígenas não tem nem sequer espaço para construir casas ou enterrar os mortos”, explica Adelar Cupsinski, assessor jurídico do Cimi e coordenador do grupo de trabalho que elaborou o relatório sobre a Região Sul.
“Esses relatórios são importantes porque são um momento em que nossa fala é mostrada, o que fortalece nossa luta. A sociedade tenta invisibilizar a nós, indígenas, todo o tempo, especialmente na região Sul, em que todo o tempo os políticos estão falando que não tem indígenas lá”, afirma Kerexu Yxatyry, liderança Guarani Mbya da Terra Indígena (TI) Morro dos Cavalos, uma das abordadas pelo relatório do CNDH.
Exemplo da situação enfrentada por vários povos indígenas do Brasil, os Guarani Mbya lutam pela demarcação de da TI Morro dos Cavalos há 24 anos. Desde 2008, os indígenas aguardam a homologação da TI, última etapa formal de reconhecimento de uma terra indígena.
“A não demarcação atrapalha todo o modo de vida Guarani, principalmente na questão do plantio, da caça e do acesso à matéria-prima para fazer nossas casas e artesanatos. De 1988 hectares, ocupamos menos de um quarto da terra indígena, um espaço bem pequeno. A maioria das casas dos indígenas estão concentradas próximas da rodovia BR-101 e as partes melhores ainda estão ocupadas por posseiros”, explica a indígena.
Recomendações ignoradas e direitos não efetivados
No relatório divulgado em setembro de 2016 a respeito de sua visita ao Brasil, ocorrida meses antes, a relatora especial da ONU sobre os direitos dos povos indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, caracterizou a situação dos povos indígenas no Brasil como a mais grave desde a adoção da Constituição Federal de 1988.
Tauli-Corpuz apresentou uma série de recomendações ao Estado brasileiro para superar a grave situação que a relatora da ONU verificou durante sua passagem pelo Brasil. Um ano depois de sua visita, entretanto, nenhuma das recomendações foi cumprida, conforme denunciaram ao Alto Comissariado da ONU a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e outras 30 organizações no início de abril.
“O Brasil será sabatinado no dia 5 de maio na ONU. Como agora ele é membro do Conselho de Direitos Humanos, isso deveria forçá-lo a arcar de forma mais firme com esses compromissos. Depois da sabatina, espera-se que o governo faça uma apresentação das recomendações recebidas”, afirma Yamada.
“Olhando para o cenário político, eu vejo um cenário desesperador. É um trator passando por cima de todo o Brasil, especialmente dos indígenas. Mas, por outro lado, vejo que hoje os indígenas tomaram posse dessa questão da luta pelos direitos, como foi na década dos anos 1980 pela Constituinte. Infelizmente, hoje deveríamos estar usufruindo daquela luta do passado, mas estamos lutando para garantir que permaneçam esses direitos”, conclui Kerexu Yxatyry.
Fonte: ABIP – Articulação dos Povos Indígenas