Ao anunciar que vai instalar uma comissão para rever uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre aborto, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, deflagrou mais um capítulo da batalha travada entre o Congresso e o Judiciário.
A decisão de Maia, anunciada em plenário horas depois de um julgamento na corte, foi tomada no mesmo dia em que os deputados aprovaram punição para juízes e membros do Ministério Público, alterando o pacote original de medidas de combate à corrupção.
Nesta terça (29), três dos cinco integrantes da Primeira Turma do STF entenderam que a interrupção da gravidez até o terceiro mês de gestação não é crime. A discussão ocorreu durante o julgamento sobre a revogação da prisão preventiva de cinco médicos e funcionários de uma clínica de aborto na região metropolitana do Rio.
A decisão vale somente para o caso específico. Mas como se trata de um entendimento que pode ser seguido por instâncias menores e, para muitos, sinaliza que a mais alta corte caminha para uma futura descriminalização do aborto, a Câmara decidiu reagir criando uma comissão para avaliar a decisão dos ministros.
“É uma batalha interessante que está acontecendo. Principalmente com temas relacionados a crimes e a moralidade, há um tipo de guerra na qual o Supremo parece assumir uma postura mais liberal em defesa de direitos civis e minorias, e o Congresso sinaliza com um tom mais conservador”, observa Fiona Macaulay, professora da Universidade de Bradford, no Reino Unido.
Bancada BBB
A professora, que pesquisa temas relacionados aos direitos humanos e reformas do sistema penal no Brasil e na América Latina, acredita que muitos dos objetos de tensão entre os poderes estão relacionados também à força da chamada “Bancada BBB”, em referência às palavras Bíblia, boi e bala. Trata-se de um grupo estimado em 320 congressistas, de perfil mais conservador, ligados às frentes evangélica, ruralista e de favoráveis ao armamento e à redução da maioridade penal.
Macaulay, no entanto, observa que essa não é uma tendência exclusiva do Brasil. Segundo a professora, a chamada “judicialização da política”, em especial em assuntos ligados a liberdades civis e direitos de minorias, acontece também em países como a Colômbia e a Costa Rica.
Para discutir a criminalização do aborto, o presidente da Câmara avisou ao plenário que vai criar uma comissão com 34 titulares e igual número de suplentes para se posicionar em até 11 sessões, prazo previsto pelo regimento da Casa para que o tema seja levado para apreciação dos 513 deputados.
Segundo a Casa, a comissão especial deve se debruçar sobre uma proposta de emenda à Constituição que estende o tempo de licença maternidade em caso de nascimento prematuro – a PEC 58/2011 -, mas incluindo o aborto no debate.
O Código Penal prevê pena de prisão de um a três anos para a mulher que aborta e de até quatro anos para o médico que realize o procedimento. No ano passado, o STF autorizou a interrupção de gestações de fetos anencéfalos. E a corte está prestes a iniciar um debate à respeito das mulheres grávidas de bebês com microcefalia – discussão provocada na esteira da explosão no número de casos da má-formação, relacionada ao vírus Zika.
‘Sede de Vingança’ Maia avisou que está disposto a “exercer o poder” de presidente da Câmara para rever decisões da mais alta corte do país não apenas em relação ao aborto, mas também em relação a outros casos em que avaliar que houve sobreposição de poder.
“Toda vez que nós entendermos que o Supremo legisla no lugar da Câmara dos Deputados ou do Congresso Nacional, nós deveríamos responder ou ratificando ou retificando a decisão do Supremo, como a de hoje”, declarou ao anunciar a criação da comissão.
A Câmara também concluiu a votação de um pacote de medidas de combate à corrupção, alterando o texto aprovado pela comissão especial. As mudanças, segundo o relator do projeto, Onyx Lorenzoni (DEM-RS), desfiguraram o projeto original e foram motivadas por “sede de vingança” dos congressistas contra o Judiciário e o Ministério Público, que têm intensificado o número de investigações contra os legisladores.
O tópico que gerou polêmica antes da votação – a criminalização do chamado “caixa dois” de campanha, referente a doações não declarada à Justiça Eleitoral – foi aprovado sem anistiar fatos ocorridos em nenhuma das eleições. Segundo o texto aprovado, a prática passa a ser condenada com pena de dois a cinco anos de prisão, mais multa.
Os deputados fizeram, porém, mudanças controversas. Adicionaram a punição de juízes e membros do Ministério Público por abuso de autoridade e retiraram um item que tipificava o crime de enriquecimento ilícito de funcionários públicos e previa o confisco dos bens relacionados à prática. O projeto segue agora para discussão no Senado.
Batalha contínua Antes da aprovação do pacote, a presidente do Supremo, ministra Cármen Lúcia, já havia criticado o que chamou, na manhã de terça, de “tentativa de criminalizar o agir do juiz brasileiro”. Ela se posiciona especialmente contra projetos como o de autoria do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), que penaliza com prisão e multa delegados estaduais e federais, promotores, juízes, desembargadores e ministros de tribunais superiores que ordenarem ou executarem “captura, detenção ou prisão fora das hipóteses legais”.
Renan minimizou as críticas da ministra dizendo não entender que as declarações digam respeito a ele e manteve a votação do projeto para a próxima terça (6).
Os dois já haviam trocado farpas em outubro, quando Renan criticou a Operação Métis, que apura suposta tentativa da Polícia do Senado de obstruir investigações de congressistas na operação Lava Jato.
Na ocasião, o senador chamou de “juizeco” o magistrado que autorizou a operação. A presidente do Supremo foi então a público exigir respeito ao Judiciário. Depois disso, Renan diminuiu o tom das críticas e ligou para pedir desculpas.
Na avaliação do professor de direito do King’s College London, Octávio Ferraz, há uma “contínua batalha entre o Judiciário e o Congresso Nacional sobre o poder de interpretação da Constituição”. Recentemente, o STF decidiu banir doações de empresas a campanhas eleitorais, declarando a prática inconstitucional apesar de o Congresso ter se posicionado a favor de liberar as colaborações feitas aos partidos.
Em casos anteriores, também houve polêmicas sobre a competência para determinar a perda de mandato dos parlamentares condenados e a Lei da Ficha Limpa, que, apesar de ter sido aprovada pelo Congresso, teve o início de sua vigor determinado pela corte. Temas ainda controversos na sociedade, como casamento gay, demarcação de terras indígenas e pesquisas com células-tronco também têm pautado julgamentos no STF.
BBC