*Por André Fraga
Em 1992 a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, que aconteceu no Rio de Janeiro, traçou como objetivo evitar a “interferência perigosa” da humanidade no sistema climático. Com décadas de atraso, impasses, pequenos avanços, grandes fracassos e depois de duas semanas de apreensão chega ao fim a COP 21, ou vigésima primeira Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre Mudança Climática, em Paris, com uma sensação de alívio e um acordo histórico entre 195 países mais a União Européia, para que o planeta inicie a transição para a economia carbono zero. É uma nova revolução industrial que se forjará nas próximas décadas, com uma visão global e com um objetivo: nos salvar de nós mesmos. Um acordo universal que talvez seja o mais importante do século XXI.
A COP é um espaço da pluralidade. Quase 200 países com suas culturas, idiomas e formas de pensar, que se misturam a ONGs, entidades empresariais, ativistas, pensadores, artistas, etc.. Um grande esforço de energia pelo clima. Paris, a cidade luz ainda vivia a ressaca dos atentados que mataram mais de 100 pessoas. E essa ressaca se via nas ruas, fortemente policiadas, e no clima quase que permanente de tensão: por duas vezes o metrô que eu estava teve a viagem bloqueada por suspeitas de novos ataques, rapidamente desfeitas. Mesmo nesse clima paris não deixou de se mostrar bela e altiva, com seus monumentos e praças, muitos deles transformados em espaços de vigília pelas vítimas. A COP aconteceu na verdade no centro de Convenções em Le Bourget, nos arredores de Paris, fora da cidade. Diferente da região central, Le Bourget desnuda o que qualquer periferia no mundo não consegue esconder: desemprego, acesso a serviços públicos precários, forte presença de imigrantes. Foram em periferias assim que em 2005 estouraram fortes distúrbios que duraram 19 noites consecutivas. Jovens se revoltaram contra a morte de dois rapazes após uma perseguição policial e, queimaram mais de 8 mil carros e entraram em confrontos com a polícia francesa. Foram presos 2.888 jovens e um morto. Os prejuízos decorrentes foram estimados em 200 milhões de dólares. Pouca coisa mudou desde então.
O grande avanço do acordo de Paris vem da vitória da ciência sobre o ceticismo. O texto final traz uma orientação para que o aquecimento do planeta fique bem abaixo de 2°C até 2100, com esforço de chegar a 1,5°C, exatamente o que defende o IPCC para que o planeta não colapse e o caos climático transforme a imprevisibilidade em padrão. Esse limite foi uma vitória política dos países insulares que formaram a Coalizão da Alta Ambição, e batalharam por sua sobrevivência, pois um aquecimento superior a 1,5ºC poderá ser sua sentença de morte, que também conseguiram manter a criação de um mecanismo de perdas e danos para apoiar os países em relação a impactos que não podem mais ser evitados e aos quais não é possível mais se adaptar.
O acordo ainda deixa lacunas, em especial o detalhamento para se limitar o aquecimento global à 1,5ºC, já que o conjunto das metas apresentadas pelos países, as chamadas INDCs (sigla em inglês para Pretendida Contribuição Nacionalmente Determinada), deixam um gap de 12 gigatoneladas de CO2, o que nos leva a um aquecimento entre 2,7°C e 3,5°C – considerando que as metas serão cumpridas na totalidade. O IPCC calculou quanto ainda seria possível emitir de CO2 antes de atingirmos o aumento de 2ºC e chegou ao que chama de “orçamento de carbono”: 1000 gigatoneladas de CO2 entre 2011 e 2100. Mas de 2011 até hoje cerca de 140 gigatoneladas foram emitidas e nosso orçamento diminuiu. Estudo publicado na revista Nature Geoscience, estimando emissões provenientes de desmatamento e produção de cimento, calcula que sobram somente 650 gigatoneladas no caixa.
Como essa meta de limitar a variação de temperatura não vem acompanhada de um roteiro dizendo como ela deve ser alcançada, cientistas têm criticado o acordo, mesmo o avaliando como um grande avanço. Sem metas e mecanismos claros o acordo pode ter sido mais uma declaração de boas intenções. Se não lutarmos para zerar as emissões até 2050 o planeta vai aquecer bem acima de 2°C. Os pesquisadores defendem ainda que o mecanismo de revisão das INDCs tem de ser muito mais freqüente e com uma sinalização clara de aumento da meta. O acordo propõe a revisão a cada cinco anos, que devem aumentar a ambição das INDCs para acelerar a implantação do acordo.
A sempre polêmica agenda do financiamento climático, que tem o potencial de emperrar as negociações foi resolvida, mesmo que não agradando a todos: serão US$ 100 bilhões por ano aportados pelos países desenvolvidos para ações de combate à mudança do clima e de adaptação nos países em desenvolvimento. O valor será um piso e deverá ser revisto em 2025.
A COP 21 também trouxe a baila o protagonismo de novos atores: as cidades. Em eventos paralelos e oficiais, redes de cidades emergiram como parte importante do esforço climático. Em 2011, apenas 14% das ações contra o aquecimento global partiam de cidades, e já em 2015, este índice aumentou para 51%. A Rede C40, por exemplo reúne 82 megacidades que representam mais de meio bilhão de pessoas e um quarto da economia global. O estudo “Climate Action in Megacities 3.0” compilou os compromissos das cidades contra as mudanças climáticas, mostrando que as metrópoles vão reduzir emissão de 3 gigatoneladas de CO2 até 2030. O estudo traz outros dados, e mostra que nos últimos seis anos, o grupo de cidades liderou cerca de 10 mil ações contra o aquecimento global, sendo que 70% é financiada com recursos próprios das prefeituras. Se formou um consenso que líderes locais podem tomar decisões mais rápidas e mais efetivas do que os governos nacionais e que as cidades surgem como parte fundamental da solução climática.
Foram mais de 1000 prefeitos e líderes locais reunidos em uma cúpula com foco em governos locais e mudanças climáticas em Paris. Eles são signatários do Compact of Mayors, uma plataforma para as cidades registrarem e acompanharem seus inventários de emissões, com metodologia padronizada (Protocol for Community-Scale Greenhouse Gas Emissions Inventories) e de maneira transparente. A plataforma é uma iniciativa da Rede C40, em parceria com o ICLEI (Plataforma da ONU para Governos Locais e Sustentabilidade) e com a CGLU (Cidades e Governos Locais Unidos), com a liderança do ex-prefeito de Nova York, Michael Bloomberg, hoje Enviado Especial do Secretário Geral das Nações para Cidades e Mudança do Clima. A COP 21 pela primeira vez reconheceu plenamente as vozes das cidades em uma conferência mundial da ONU sobre mudança climática, e foi a primeira vez que prefeitos se reuniram em grande número para exigir medidas mais ambiciosas.
No meio das negociações da COP 21, no dia 6 de dezembro, a França foi as urnas no primeiro turno de eleições regionais. Com uma abstenção de 84% (lá a votação não é obrigatória), a extrema direita, representada pela Frente Nacional deixou todos os adversários para trás alcançando 28,1% dos votos, seguida pelos Republicanos com 27,5%, pelos Socialistas com 23,5% e pelos Verdes com 6,7%. Já no último domingo (14), no segundo turno, a Frente Nacional foi derrotada e perdeu em todas as regiões para os adversários, o que em si representa também um alívio para o planeta. A Frente Nacional tem uma postura xenófoba e preconceituosa com relação a imigração, além de ser extremamente conservadora, o que, definitivamente não combina com a França.
Os verdes não tiveram um bom resultado. A performance eleitoral verde foi definida como um “desastre” pelo Le Monde, mesmo em um momento tão especial na França com a conferência de clima acontecendo.
Entre críticas e elogios o Acordo de Paris pode ser uma espécie de manual de reorientação da economia mundial e um sinal do alinhamento entre governos e a ciência do clima. Pela primeira vez um acordo entre todos os países sinaliza que a farra das emissões de gases de efeito estufa precisa chegar ao fim. Com otimismo podemos ouvir o sino que anuncia o começo do fim de uma Era suja e poluente, e o início de um paradigma para as relações internacionais, para o desenvolvimento global e uma esperança para o planeta. Esse espírito de engajamento precisa ser mantido. Será ele que nos guiará, pois ainda há muito a ser feito.
*Secretário Municipal da Cidade Sustentável de Salvador, integrou a delegação brasileira à COP 21. Foi membro da Direção Nacional do Partido Verde