A melhor briga é aquela que se pode evitar — diz um mestre do kung fu. No campo das ideias, no entanto, a luta é revigorante, desde que aceitemos a máxima de Tancredo: as ideias brigam, as pessoas não. As raposas do PMDB acabaram com o Ministério da Cultura. Acabaram com o de Ciência e Tecnologia. Mas não explicaram qual a sua política em ambos os setores.
Todos sabemos que a prioridade é econômica e que para realizá-la na plenitude é preciso ter base sólida no Congresso. É preciso também muito estômago, mas, o que fazer, são deputados e senadores escolhidos em votação popular. Realizar essas prioridades, no entanto, é como reger uma orquestra. O maestro pode ser talentoso ou não, sua regência está diante de nós. Não me considero intransigente. Se Temer mostrar qual é sua política cultural e científica e me convencer de que outros instrumentos, além de ministérios, possam realizá-la melhor, vou examinar seus argumentos. Não foi isso que aconteceu.
Quem anexa Cultura à Educação e entrega tudo nas mãos do Mendoncinha, atropela, na verdade, um debate histórico sobre esses temas no Brasil. Aliás, trato-o assim porque convivi com seu pai na Câmara, o Mendonça. Na visão simplificada, o Ministério da Cultura financiava artistas pró-governo através da lei de isenção fiscal. Mas o BNDES também financiava empresas com juros subsidiados. Vamos fechá-lo? A criação do Ministério da Cultura por Sarney é o resultado de muitos esforços. Um deles, creio, foi o de recolher e preservar nosso patrimônio artístico e histórico. Outro passo com o designer Aloísio Magalhães foi a busca de um instrumento que mediasse estado, cultura e mercado. Ao se transformar de secretaria em ministério, o MinC perdeu, de cara, o aparato de comunicação: rádio e TV.
Adiante, Gil tentou recuperar a TV, mas o governo a queria para a propaganda política. Discordei do primeiro ministro da Cultura, Celso Furtado, por ter apoiado a censura de “Je vous salue, Marie’’, um filme de Godard que foi proibido por Sarney. Jamais passou pela minha cabeça condenar o instrumento que Celso dirigia. Talvez nem concordasse com sua política. Tinha um viés negativo em relação à indústria cultural, como se produzisse apenas distorções. Collor fez uma opção mais próxima do mercado. Mas o fez sem trabalhar mediações e levou o setor cultural a se desorganizar ainda mais. No governo FHC, voltou-se ao tema do mercado, com o slogan “cultura é um bom negócio’’.
A experiência petista foi formular a política ouvindo os produtores culturais ao longo do país, mais de 2 mil entidades. O objetivo era também estabelecer uma ampla frente de apoio político. O que quer o governo Temer? Imagino que o sonho dos burocratas que o cercam é apenas cortar gastos. Mas mexer em cultura e ciência, fechando dois ministérios, significa abrir longa discussão. Diante das circunstâncias, sou a favor, como quase todo mundo, do corte de despesas estatais.
Quando ele se faz suprimindo e reagrupando ministérios, sua lógica não pode ser medida só em grana. Qual a política de Temer para cultura e ciência? O departamento de distribuição de culpas da esquerda já aponta para os defensores do impeachment: olha o que fizeram. Lembro-me sempre de um ministro húngaro, após a queda do Muro de Berlim: havia uns fanáticos que achavam que o estado resolve tudo, entraram outros que veem no mercado a solução para todos os problemas. Isto significa que a luta pelo equilíbrio deve continuar, sobretudo após a queda de um dos polos da contradição. A ideia de que cultura e ciência não têm importância num país falido é um equivoco.
Ao lado da tecnologia, essas duas dimensões conferem mais valor ao nosso trabalho. O caso da Estrada Real, por onde o ouro era transportado de Minas até Paraty, é apenas uma de centenas de exemplos. Era apenas um espaço vazio de memória. Quando as pessoas perceberam que estavam percorrendo um caminho histórico, sentiram algo que é fundamental na nova ideia do turismo: aprenderam alguma coisa, percorrem um novo espaço. A cultura conferiu um valor novo à região.
O período que nos antecedeu foi muito polarizado. Se reduzirmos a cultura a uma contradição esquerda-direita, corremos o risco de jogar fora o bebê com a água do banho. Ela tem um papel na reconstrução econômica. É uma poderosa indústria, conta com milhares de produtores independentes. A maioria deles não depende do governo. Não estamos condenados a exportar commodities. Bem articuladas, cultura e relações exteriores podem ampliar nosso alcance. Atribui-se a um oficial franquista, na Guerra Civil Espanhola, esta frase: quando ouço a palavra cultura, saco minha pistola. Vivemos tempos diferentes. Quando se ouve a palavra cultura, saca-se a tesoura. E é compreensível, até no orçamento das famílias. Não é preciso ter uma câmera na mão, uma ideia na cabeça. Os dirigentes precisam de uma tesoura na mão e uma ideia na cabeça. Sem uma ideia, a tesoura parece uma pistola.
PS: No fim da tarde de sábado, soube que o governo estava se movimentando para resolver o problema. Fala-se na volta do Ministério. Ouvi a hipótese de uma secretaria especial. Há boa vontade, mas ainda falta uma visão das linhas gerais de sua política.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 22/05/2016