Relembre os extremos, as tragédias e as vitórias do combate ao aquecimento global no ano que se encerra
DO OC – Mais um ano que não vai deixar saudades chega ao fim. O mundo assistiu em 2017 a uma intensificação de extremos climáticos, que mataram milhares de pessoas e causaram prejuízos de várias centenas de bilhões de dólares. Ao mesmo tempo, viu o negacionismo triunfar com a decisão do presidente dos Estados Unidos de abandonar o Acordo de Paris sobre mudanças climáticas.
No Brasil, 2017 foi marcado por retrocessos em série na política ambiental, mas também por algumas (poucas) vitórias da sociedade civil. Como governo e Congresso são os mesmos em 2018, é melhor manter a atenção, porque pior do que está fica, sim.
Relembre abaixo alguns dos fatos mais marcantes para o clima no ano que se encerra.
1 – O annus mirabilis de Nílson Leitão
Pense numa pessoa que termina 2017 plenamente realizada e nós lhe daremos o deputado Nílson Leitão (PSDB-MT). O líder da bancada ruralista, a maior força no Congresso brasileiro, ganhou quase tudo o que quis neste ano em troca de seus 240 votos sempre que o governo precisava aprovar uma reforminha aqui ou salvar o mandato do presidente Temer ali. Quase todos os itens da agenda da bancada que dependessem do Executivo foram contemplados. Os ruralistas ganharam o desmonte da Funai, com a nomeação de um dos seus para o Ministério da Justiça; a fixação da tese do marco temporal para terras indígenas pelo governo federal; a anistia à grilagem de terras (que pode custar aos cofres públicos R$ 19 bilhões só na Amazônia e é objeto de uma ação de inconstitucionalidade movida por Rodrigo Janot em sua última semana no cargo); a redução da contribuição do Funrural, com renúncia fiscal de R$ 8 bilhões; e o aval para a redução de unidades de conservação. É um conjunto de vitórias impressionante num prazo recorde, que em tempos normais demandaria vários mandatos de presidentes da Frente Parlamentar da Agropecuária. Mas os tempos atuais da política brasileira são tudo, menos normais.
2 – Trump cumpre a promessa…
No dia 1o de junho, no jardim da Casa Branca, Donald Trump anunciou para uma claque de negacionistas do clima que os Estados Unidos iriam se retirar do Acordo de Paris, “mas começar negociações para reentrar o Acordo de Paris ou uma transação inteiramente nova em termos que sejam justos para os Estados Unidos”. Num discurso recheado de mentiras, o presidente tentou justificar o injustificável e dar um chapéu na comunidade internacional.
O movimento era esperado – afinal, “cancelar” o tratado do clima era promessa de campanha do maluco republicano, que já havia dado em março carta branca à Agência de Proteção Ambiental para desmontar as políticas de clima postas em marcha por Barack Obama, que facilitariam o cumprimento da meta do país. Mas o mundo se escandalizou mesmo assim: afinal, os EUA não ganham nada saindo de Paris, assim como não perdem nada ficando.
Embora pelas regras do acordo uma saída efetiva não possa ocorrer antes de novembro de 2020, último mês de mandato de Trump, o anúncio bastou para envenenar o processo de negociação do acordo, por três motivos: primeiro, toda a comunidade internacional terá de aumentar os esforços para compensar a falta de ação do segundo maior emissor do planeta; segundo, os EUA são um dos principais doadores do Fundo Verde do Clima, e outros países ricos não estão dispostos a aumentar suas contribuições, o que tem causado estresse com os países em desenvolvimento; terceiro, a desistência impune dos EUA poderia estimular outras nações como a Rússia a fazer o mesmo.
3 – …e o mundo reage
Em grande medida, o tiro de Trump saiu pela culatra. Até agora, o anúncio do abandono do acordo do clima tem servido para unir forças globais em torno de Paris. No mesmo dia em que Trump discursou, a chanceler alemã, Angela Merkel, e o presidente francês, Emmanuel Macron, chamaram a imprensa para dizer que o Acordo de Paris “não é renegociável”. Elon Musk, o dono da Tesla, saiu do conselho econômico presidencial. E uma coalizão de empresas e governos municipais e estaduais chamada “We’re Still In” (“nós ainda estamos dentro”) se formou para levar adiante as metas do tratado, mesmo sem o governo federal. Na COP23, em Bonn, no fim do ano, representantes americanos foram humilhados ao tentar vender o carvão mineral como solução para o clima. E, em dezembro, Trump foi o assunto in absentia da cúpula convocada por Macron para marcar os dois anos de adoção do pacto climático.
4 – Bacalhau com molho de climão
Jamais tente enganar um viking. Michel Temer deveria ter pensado nisso antes de partir em sua primeira viagem oficial à Noruega. O presidente foi ao país escandinavo em pleno escândalo da mala, em junho, para dar uma folga da crise política e vender o Brasil a investidores. Saiu de lá com um puxão de orelha, um corte de doação internacional, um protesto e uma gafe.
Na véspera da viagem, o ministro do Meio Ambiente norueguês mandou uma carta a seu colega Sarney Filho expressando preocupação com a proteção ambiental no Brasil e avisando que a alta no desmatamento nos dois anos anteriores levaria a um corte no Fundo Amazônia. Temer tentou disfarçar, anunciando no dia da viagem o veto a duas Medidas Provisórias que reduziam áreas protegidas na Amazônia. Mas não funcionou: os noruegueses confirmaram à imprensa o corte de 50% do repasse do fundo (e o ministro Sarney Filho disse que “só Deus” podia garantir que o desmate cairia). Temer ainda levou um pito da premiê da Noruega, Erna Solberg, por causa da corrupção e do desmatamento. Ficou tão nervoso que chamou Noruega de Suécia em seu discurso conjunto com Solberg.
5 – Calor sem El Niño
Mais um ano, mais um recorde. 2017 ainda não acabou, mas já é o terceiro ano mais quente desde o início das medições com termômetros, em 1880. Perde só para 2016 e 2015, mas pode ser que termine em segundo lugar, abaixo apenas de 2016. Segundo a Organização Meteorológica Mundial, entre janeiro e setembro a temperatura da Terra ficou 1,1oC acima da média pré-industrial. Estamos há 637 meses sem um mês de frio anormal no mundo – o último ocorreu em 1929. O problema deste ano ser tão quente é que, diferentemente de 2015 e 2016, não há um El Niño para ajudar a jogar os termômetros para cima: o calorão insuportável está todo na conta da tendência de longo prazo de aquecimento global.
6 – Um país em chamas
O Brasil pegou fogo. O ano de 2017 foi o que mais registrou queimadas em toda a história desde que o monitoramento com satélites começou, em 1988. Foram 273 mil focos de calor até o fechamento deste texto, dez dias antes do fim do ano. O recorde anterior pertencia a 2004, com 270 mil focos. A secura extrema do solo na Amazônia, no Nordeste e no Centro-Oeste, que não se recuperaram das estiagens atípicas dos últimos anos, tornaram o país inteiro uma espécie de bomba de Napalm, altamente inflamável. Os produtores rurais se encarregaram de acender a fagulha.
7 – Um mundo em chamas
As altas temperaturas e a secura do ano não causaram incêndios só no Brasil A primavera e o verão no hemisfério Norte foram particularmente cruéis, com incêndios florestais de grandes proporções na Califórnia, no Canadá e na Europa. Uma onda de calor apelidada “Lúcifer” se abateu sobre o Mediterrâneo, levando os termômetros a 43oC no sul da França, na Itália, na Croácia e na Península Ibérica. Em Portugal, mais de 60 pessoas morreram em decorrência dos incêndios na região de Pedrógão Grande. Nos Estados Unidos, a região vinícola da Califórnia foi destruída, com prejuízos bilionários. E, em pleno outono, o fogo voltou, atingindo os arredores de Los Angeles e forçando estúdios de Hollywood a fechar.
8 – Harvey, Irma, Maria (e José, Katia, Nate, Ophelia…)
Você já sabe, mas não custa repetir: a temporada de furacões de 2017 foi a mais _____________ (cole aqui seu adjetivo preferido) já registrada. Há recordes para onde quer que se olhe: foram 17 tempestades fortes o bastante para merecer nome (de Arlene a Rina); um índice de energia de tempestades duas vezes maior que a média de 1981 a 2010; dois furacões de categoria 5 em rápida sucessão (Irma e Maria); o furacão mais forte da história (Irma); três supertempestades tocando terra nos EUA e no Caribe (Harvey, Irma e Maria); um furacão (Harvey) causando o maior acúmulo de chuva já registrado nos EUA (1.500 mm); três furacões atravessando o Atlântico simultaneamente (Irma, José e Katia); e o furacão de categoria 5 mais demorado de todos os tempos (de novo Irma). No finalzinho da temporada, Ophelia tornou-se o furacão mais intenso a atravessar o Atlântico rumo ao nordeste, como categoria 3, e foi causar estragos na Irlanda e na Espanha. No momento em que este texto é escrito, grande parte da ilha de Porto Rico continua sem luz após a passagem do Maria. Os prejuízos estimados passam de US$ 230 bilhões.
9 – A Ásia debaixo d’água
Sobrou chuva também para o Sudeste asiático. As monções deste ano foram especialmente intensas e mataram cerca de 1.200 pessoas na Índia e em Bangladesh. Mais de 40 milhões de pessoas foram deslocadas ou atingidas pelas chuvas, segundo a OMM. Na África, Freetown, em Serra Leoa, registrou mais de 1.400 milímetros de chuva em duas semanas em agosto, o que causou um deslizamento que matou 500 pessoas e expôs a diferença de impacto da mudança do clima em países pobres e ricos (a chuva acumulada foi quase a mesma que o Harvey despejou no Texas, mas as perdas no país africano foram muito maiores).
10 – O Modelo 3
O dia 28 de julho de 2017 poderá no futuro ser lembrado como a data em que o motor a explosão foi ferido de morte. Naquele dia, a Tesla, que chegou a ser a empresa de automóveis mais valiosa do planeta, lançou seu primeiro carro elétrico “popular” (entre muitas aspas), o Modelo 3. É um sedã médio que vai de zero a cem em seis segundos e roda 346 km com uma carga de bateria. Custa “apenas” (entre muitas aspas) US$ 35 mil e já tem 500 mil unidades encomendadas. Alguns analistas, não sem certo ufanismo, compararam o primeiro veículo de massas produzido pelo sul-africano Elon Musk ao iPhone. É cedo para dizer ainda. Mas os carros elétricos estão dominando o mercado mais rápido do que se previa (neste ano, a Volvo anunciou que não produzirá mais nenhum carro a combustão interna a partir de 2019 e a França anunciou que irá banir esses veículos em 2040) e podem mexer de forma significativa na demanda por petróleo. Aguardem as cenas dos próximos capítulos.
11 – A trapalhada do cobre
Só mesmo Michel Temer é capaz de botar ambientalistas e artistas na defesa do legado do general João Figueiredo. Foi o que ele e seu ministro de Minas e Energia, Fernando Coelho, fizeram ao extinguir – como de hábito, sem consultar ninguém a não ser empresas interessadas – a Reserva Nacional do Cobre e Associados, uma reserva mineral do tamanho do Espírito Santo na calha norte do Amazonas.
A Renca foi criada em 1984 com vistas a dar o monopólio da exploração de cobre e ouro ao Estado. A ditadura jamais pensou nela como reserva ambiental, mas ela acabou funcionando como uma; sobrepostas a ela há nove unidades de conservação e duas terras indígenas. Ao decretar sua extinção, passando por cima de uma avaliação do Ministério do Meio Ambiente e ainda dizendo que o lugar “não é um paraíso”, Temer deu munição aos ambientalistas que o acusavam (com razão) de estar “vendendo a Amazônia”. O desgaste de imagem para o governo foi tão grande que até a bancada ruralista fez questão de ir a público dizer que não tinha nada a ver com aquele peixe. A pressão foi tanta que o governo foi obrigado a recuar e restituir a Renca.
12 – Ártico derrete, Rússia comemora
A mudança climática tem poucos ganhadores e muitos perdedores, e em nenhum lugar os ganhadores ganham tanto quanto na Rússia. Neste ano, enquanto o gelo marinho no oceano Ártico atingia sua quinta menor extensão mínima já registrada, os russos brindavam a abertura de uma nova rota marítima. No final de agosto, o petroleiro russo Christophe de Margerie cruzou sem ajuda de quebra-gelo a Rota Marítima do Norte, a passagem antes permanentemente congelada entre a Europa e Ásia pelo litoral siberiano. A navegação foi feita em apenas seis dias – economizando 30% do tempo em relação à rota do canal de Suez. Os russos querem investir no desenvolvimento da região, apostando que em pouco tempo ela se tornará o caminho preferencial do tráfego marítimo entre os dois continentes.
13 – A guerra pelo Jamanxim
Neste ano, uma porção de terra esquecida no meio do Pará virou “trending topic” no Twitter. Agindo em tabelinha, o governo Temer e a bancada ruralista propuseram a redução de quase 1 milhão de hectares em áreas protegidas da Amazônia e na Mata Atlântica, sendo a principal delas a Floresta Nacional do Jamanxim, no Pará. A Flona é a área protegida mais invadida e desmatada no Brasil, e a solução encontrada pelo governo para acabar com o problema foi prosaica: entregar um naco da unidade aos invasores e desmatadores. A proposta, que teve oposição forte da sociedade e motivou uma bronca do governo norueguês ao Brasil, foi e voltou diversas vezes até ganhar sua forma final: um projeto de lei propondo o corte de 350 mil hectares do Jamanxim – uma das maiores reduções de uma área protegida federal já propostas na história. O texto tramita na Câmara, com várias emendas de ruralistas que buscam, adivinhe, ampliar a área a ser desprotegida e reduzir as salvaguardas ambientais.
14 – O Ibama contra-ataca (e vira alvo)
Depois de um ano funcionando em marcha lenta em 2016 por falta de recursos, o Ibama retomou as atividades de fiscalização ambiental, turbinado por verba do Fundo Amazônia. O resultado foi uma desaceleração na taxa de desmatamento, que caiu 16% em 2017 – uma das raras boas notícias do ano. Mas não parou por aí: a presidente do órgão, Suely Araújo, costurou um projeto de lei de licenciamento ambiental que contorna a “licença flex” que a bancada ruralista tentou emplacar diversas vezes nos últimos dois anos, e ainda vetou a exploração de petróleo na foz do Amazonas.
A ação não podia passar impune. Dizem as más línguas que muito deputado ao chegar ao gabinete de manhã pede duas coisas: um café e a cabeça da presidente do Ibama. Na Amazônia a turma é menos sutil: a gerente regional de Santarém (PA) foi ameaçada de morte na região da BR-163, que assistiu a uma série de passeatas e protestos contra a fiscalização. Em julho, dois caminhões carregados com picapes do Ibama foram emboscados e incendiados por madeireiros em Novo Progresso (PA), também em represália. Em outubro, um novo atentado, desta vez organizado por garimpeiros e com a participação do prefeito, alvejou os prédios do Ibama e do Instituto Chico Mendes em Humaitá (AM). Após o ataque, o governador do Amazonas, Amazonino Mendes, deu licença aos criminosos para explorar ouro.
15 – Emissões em alta, economia em baixa
Em 2016, o Brasil se tornou a única grande economia do mundo a ver suas emissões de gases de efeito estufa dispararem enquanto sua economia estava em queda livre. A informação foi revelada em outubro deste ano pelo SEEG, o Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa do Observatório do Clima. A elevação de 9% se deveu ao pico de desmatamento na Amazônia – alta de 27% no ano passado. O setor de energia, que está mais diretamente vinculado à economia real, viu uma queda de 7,3%. Com 2,278 bilhões de toneladas de CO2 equivalente emitidas, o Brasil é o sétimo maior poluidor do planeta.
16 – O Brasil é fóssil
Enquanto o ministro Sarney Filho botava banca de bom moço ao anunciar a redução da taxa de desmatamento na COP23, na Alemanha, e se oferecia para sediar a COP25, tomava um 7×1 do próprio governo, que fazia avançar no Congresso uma Medida Provisória que concedia subsídios multibilionários às empresas de petróleo para promover o saldão do pré-sal. A cifra final da renúncia fiscal depende da premissa adotada na conta, mas alguns estudos têm indicado que ela pode passar de R$ 1 trilhão até 2040 – daí o apelido do projeto, MP do Trilhão. A proposta deu ao Brasil o antiprêmio Fóssil do Dia na COP, e com razão: somente o óleo do pré-sal, se for todo queimado, pode fazer o mundo perder a chance de estabilizar o aquecimento global em 1,5oC. Alheio ao clima e à responsabilidade fiscal, o Congresso aprovou a proposta, que deve ser sancionada por Michel Temer nos próximos dias.
17 – Fiji vence, mas não convence
A COP23, a conferência de Fiji, terminou em 18 de novembro em Bonn, na Alemanha, com a mesma emoção com que havia começado: muito pouca. A primeira conferência do clima após o anúncio-bomba da saída dos EUA do Acordo de Paris tinha tudo para entornar. Havia uma ressurgência da desconfiança entre países ricos e pobres, principalmente em torno do financiamento climático, e dúvidas sobre como seria estruturado o chamado Diálogo Talanoa, em 2018, a primeira conversa sobre aumento de ambição das metas dos países no Acordo de Paris. As divergências foram contornadas, os elementos que comporão o manual de instruções do acordo do clima foram definidos e o Diálogo Talanoa foi rascunhado. No entanto, os debates na COP23 passaram ao largo do que realmente importa: a necessidade de aumentar enormemente as metas de redução de emissões e de financiamento climático antes que a janela de oportunidade ainda aberta para limitar o aquecimento global a 1,5oC se feche. Segundo a ciência, a ambição coletiva precisa ser turbinada até 2020, mas os 195 membros da Convenção do Clima que permanecem fiéis ao Acordo de Paris até agora não se mostraram dispostos a botar as cartas na mesa.