Desde então, os procuradores da Lava Jato ameaçaram abandonar a operação caso o novo texto, aprovado na Casa, obtenha aval no Senado e seja sancionado pelo presidente Michel Temer. Para a Procuradoria, os deputados aprovaram uma “pálida sombra” da proposta inicial, defendida neste domingo em protestos pelo Brasil.
Mas, na opinião de juristas ouvidos pela BBC Brasil, as medidas estavam longe de ser unanimidade antes mesmo de chegarem ao Congresso como projeto popular apoiado por mais de dois milhões de assinaturas. Para eles, a maioria das propostas dos procuradores é “autoritária” e aposta na filosofia do “prender primeiro, perguntar depois”.
Alguns dos juristas vão além: dizem que as modificações feitas pela Câmara, principalmente a supressão de vários trechos, são “menos piores” que a proposta original, embora todos reprovem um dos pontos inseridos pelos deputados – a emenda que estabelece crime de responsabilidade para juízes e integrantes do Ministério Público. A versão original das “Dez Medidas Contra a Corrupção” inclui questões polêmicas, como a criação de um “teste de integridade” para provar a retidão de funcionários públicos e a hipótese de uma “prisão extraordinária” para permitir a localização de bens desviados. Nesse caso, não seria necessário provar que o acusado está escondendo os bens, como acontece hoje com a prisão preventiva.
Os deputados rejeitaram essas partes, mantendo apenas itens como a criminalização do caixa 2 em campanha eleitoral, o aumento de punição para crime de corrupção e a limitação de recursos em processos. “O projeto original era horroroso e o que passou também é bem ruim. Mas, se você analisar em termos do respeito aos direitos e às garantias fundamentais, o atual é menos pior”, afirma o juiz Rubens Casara, professor de Processo Penal da Escola de Magistratura do Estado do Rio.
“Tinha um projeto que era um zumbi fascista e foi transformado num Frankenstein esquizofrênico”, compara.
Presunção de inocência
Para Casara, instrumentos como a prisão extraordinária representam um “tremendo retrocesso”, pois passariam por cima de direitos fundamentais como a presunção de inocência. Outros juristas reforçam o argumento de que, no afã de punir os culpados, o pacote anticorrupção levaria junto inocentes.
O juiz federal Flávio Antônio da Cruz, do Paraná, ressalta que o direito penal também serve para proteger quem não tem culpa, o que seria prejudicado no plano no Ministério Público Federal.
Para ilustrar sua opinião, ele cita a medida que fala sobre a criminalização do enriquecimento ilícito.
No pacote original, o enriquecimento seria punido, mesmo que não fosse possível “descobrir ou comprovar quais foram os atos específicos de corrupção praticados”. Para evitar a pena, os investigadores ou o suspeito precisariam mostrar que o dinheiro é lícito.
“Ninguém é obrigado a provar sua inocência. Imagina que alguém não consiga mostrar a origem do dinheiro, mas também não existam indícios de que o valor é ilícito. O juiz pode condenar sem provas da corrupção”, diz Cruz. Procurado pela BBC Brasil, o coordenador da força-tarefa da Lava Jato, procurador Deltan Dallagnol, afirma a possibilidade de prisão extraordinária já existe, mas se tornaria mais específica.
“A lei já permite que alguém seja preso quando a liberdade do réu representa um risco para a aplicação da lei, inclusive no tocante ao produto e proveito do crime, e quando ele está ocultando e dissimulando patrimônio.” Ele nega que a proposta de criminalização do enriquecimento ilícito prejudique a presunção de inocência. Isso porque, diz ele, cabe ao Ministério Público provar que há uma diferença entre o patrimônio total de uma pessoa e os recursos e bens que têm origem lícita.
“Além disso, a dúvida sempre favorece o réu”, acrescenta Dallagnol.
Punição
Segundo os magistrados, a proposta dos procuradores vai contra estudos internacionais que mostram que o aumento de punição não é o melhor caminho para combater um delito. Eles citam o caso da Lei de Crimes Hediondos, de 1990, que elevou as penas, mas não diminuiu a violência.
“Foi o maior fracasso. Aumentaram-se as penas, a população carcerária dobrou e a criminalidade não baixou. Ao contrário, cresceu com a criação das facções”, diz Marcelo Semer, ex-presidente da Associação de Juízes para a Democracia. O ideal, afirmam, seria trabalhar na prevenção desses atos, mudando processos administrativos como as licitações públicas. Eles argumentam que a corrupção é sistêmica, influenciada por fatores sociais e econômicos, e precisa de mais do que leis.
Em resposta, Dallagnol defende a punição como instrumento importante para enfrentar a corrupção. Ele cita estudiosos do tema como Suzan Rose-Ackerman, da Universidade de Yale, que adotam a mesma linha de raciocínio.
“Quem decide se corromper pesa em sua decisão, num prato da balança, os benefícios do crime, como o dinheiro desviado e que hoje é difícil de ser recuperado, e, no outro prato, os custos, que são a probabilidade da punição e o montante da punição, que são mínimos no Brasil. A equação favorece a corrupção.” O procurador afirma também que o pacote anticorrupção original prevê campanhas de marketing e projetos de pesquisa, que ajudariam na prevenção.
O advogado e professor de Direito da USP Modesto Carvalhosa concorda com Dallagnol. Para ele, as ações punitivas previstas no pacote são necessárias e não impedem a aplicação de ações preventivas. “Você pune e previne, pune e educa. Se não houvesse punição, os crimes seriam maiores. À medida que você aumenta as penas, inibe os delitos.”
Contaminação de outros processos
Outra crítica dos entrevistados é que a proposta da Procuradoria seria muito abrangente. Ao não focar em delitos ligados à corrupção, o Ministério Público Federal abriria espaço para que esse caráter de punição contaminasse outros processos.
Semer diz que as “Dez Medidas” misturavam mudanças no Código de Processo Penal para todos os crimes com alterações no Código Eleitoral e no Código de Processo Civil.
“Como o projeto era amplo, tudo cabia dentro dele.” Professor de Direito da FGV e um dos editores do site Supremo em Pauta, Rubens Glezer afirma que, com uma abordagem tão ampla, o tom das medidas poderia afetar quem mais sofre dentro do sistema legal: pobres e negros.
“O projeto não restringe essas ações ao grupo de privilegiados, que se mantém acima da lei. E vai acabar prejudicando quem está abaixo dela.” Esse “efeito cascata” aconteceria, diz o professor, porque as medidas oferecem soluções simples demais, que valem para tudo. Ele exemplifica: em vez de valer para todos os crimes, a prisão extraordinária poderia ser aplicada apenas nos casos de desvio de verba pública.
“Você pode matar uma mosca com uma bala de bazuca, mas destrói o que está ao redor”, diz Glezer. Em defesa dessa chamada amplitude das medidas, o coordenador da força-tarefa da Lava Jato lista regras gerais do sistema de Justiça Criminal que afetam os casos de corrupção, como a possibilidade de entrar com vários recursos. “Por isso, não há como resolver o problema da impunidade da corrupção sem alterar aspectos específicos do sistema penal e processual que se aplicam a variados crimes. Isso não traz nenhum prejuízo aos réus.”
Força da instituição
As críticas são feitas também dentro do Ministério Público Federal. A subprocuradora Ela Wiecko Volkmer de Castilho, que pediu exoneração do cargo de vice-procuradora-geral da República em agosto, concorda que o pacote é “punitivista” e não seria eficaz para superar a corrupção.
Segundo Wiecko, as propostas não foram discutidas abertamente dentro da instituição. Mas, uma vez lançadas, “foram aplaudidas pela maioria dos integrantes” e tornaram-se indiscutíveis – “tudo ou nada”. Ela vê uma eventual aprovação do projeto resultando numa “instituição que impõe temor”.
Para os entrevistados, o pacote tem uma relação íntima com os interesses do órgão. “Preocupa-me a satanização da política e a substituição dela por uma ideia de corporações fortes. O problema não é a força em si, mas o seu uso, que pode ser na defesa dos interesses próprios”, diz o juiz Flavio Antônio da Cruz.
Para Marcelo Semer, as propostas são um projeto de poder, para aumentar as competências do Ministério Público (a acusação), diminuir as atribuições dos juízes e “esmagar” a defesa.
Dallagnol, porém, rebate: as mudanças não feririam a defesa, mas protegeriam as vítimas da corrupção. “Precisamos de um direito penal e de um processo penal equilibrados, que protejam não só os direitos dos réus, mas também os das vítimas.”
Popularidade
Os juristas veem com apreensão a popularidade do órgão e de seus procuradores nos últimos meses. O aval popular é perigoso, dizem – poderia fazer a Procuradoria ganhar a queda de braço com o Congresso, mas também pode torná-la refém das preferências do público.
“O MPF sempre precisou ficar nessa área meio cinzenta, entre mobilizar a população e fazer o que ela quer”, diz Rubens Glezer, da FGV. Tentando se equilibrar nesse limiar, os procuradores vão assumindo um protagonismo político que seria estranho a suas funções, afirma o professor Salah H. Khaled, da Universidade Federal do Rio Grande (RS).
“Não é papel do Ministério Público propor projeto de lei e coletar assinaturas de pessoas com essa finalidade. Igualmente censurável é a manifestação do Juiz Sérgio Moro: juízes não são agentes políticos e não devem interferir no processo legislativo.”
Dallagnol argumenta que as punições propostas existiriam para proteger a sociedade, e não para fortalecer a instituição. “A sociedade espera que promotores, procuradores e juízes construam um arranha-céu, chegando ao último andar da cadeia criminosa. Ao mesmo tempo, o legislador nos dá tábuas, martelos e pregos. (…) As 10 medidas dão instrumentos adequados ao Ministério Público e, especialmente, à Justiça para que o interesse da própria sociedade seja satisfeito.”
Os juristas entrevistados criticam a fala do chefe da força-tarefa da Lava Jato à imprensa logo após a aprovação do pacote anticorrupção na Câmara. Em uma entrevista coletiva na quarta-feira, Dallagnol ameaçou, junto a outros procuradores, abandonar a operação caso a versão modificada fosse sancionada.
À BBC Brasil, ele voltou a dizer que os deputados praticaram uma “completa desfiguração” das medidas. E argumentou que, ao falar com a população, permitiu que ela fiscalizasse os governantes, contribuindo para uma democracia mais forte.
“Informar a sociedade de que os trabalhos serão inviabilizados não é ameaça, mas sim permitir que a sociedade conheça o risco real que corre a operação.”
Para o juiz Rubens Casara, esse tipo de declaração não ajuda na construção de uma sociedade democrática e tem, sim, fins políticos. “Me parece que foi mais uma vez manifestação querendo alcançar o imaginário da população. (O que aconteceu) faz parte da divisão de poderes. Cabe ao Congresso a elaboração das leis e ao procurador e ao juiz, a aplicação dela.”
Fonte : BBC