Ao receber em seu gabinete o produtor cultural Eufrásio Gato Felix (ex-Novos Baianos), a professora Cinthia Gabriel e outros integrantes do Grupo Cultural Refavela, o Secretário da Cultura do Estado de São Paulo, José Luiz Penna, admitiu a existência de uma dívida histórica do Estado brasileiro para com as populações afrodescendente e indígena, através de políticas excludentes, e explicou o porquê de sua gestão apoiar, sem restrições, a realização da Bienal Afro-Brasileira do Livro, a BienAfro: “Ao contrário da visão hegemônica, de uma suposta homogeneidade cultural, entendemos que a diversidade é a verdadeira riqueza, o diferencial de nosso País. O mundo vai crescer, na observação de suas diferenças”. Segue-se a entrevista na íntegra.
Refavela – Senhor Secretário, nos explique o porquê de nosso projeto da BianAfro ter conquistado seu apoio.
José Luiz Penna – Entendo essa coisa racial é um elemento complicador. Porque o que interessa, mesmo, é a Cultura. Aí, queiram ou não os defensores da hegemonia eurocêntrica, o mundo erudito e tal, a nossa cabeça foi formatada na cozinha. Tem esse negócio de dizer que o brasileiro tem um pé na cozinha, não tem? Pois, eu acho que o brasileiro tem a cabeça na cozinha. Na minha concepção, somos um país africanizado, queiram ou não. A cultura produzida nessa parte do mundo é uma possibilidade de um povo diferenciado. O que podemos, como exercício, chamar de brasilidade.
Refavela – É possível considerar a difusão, no País, das literaturas afro-brasileira, afro-diaspórica e africana uma espécie de iniciativa reparatória?
José Luiz Penna – De certa forma, sim. Houve, no Brasil, lá atrás – o que eu vou dizer é uma coisa muito empírica do ponto de vista da minha observação –, um erro gravíssimo: a libertação dos escravos, em 1888, na verdade, foi o pontapé inicial de um processo de apartheid. Foi contra o que a inteligência brasileira da época reclamava. Não se podia libertar uma grande parcela da população, sem lhe dar equipamentos que lhe garantissem a plena cidadania, como a leitura, equipamentos técnicos que lhes possibilitassem a inclusão na sociedade, em pé de igualdade com os demais. É evidente que esse processo resultou num imenso processo de exclusão. Então, as grandes massas ficaram fora do Estado brasileiro. É por isso que os governos não se sustentam. Porque os eles podem ser um cartório, mas não são legítimos, no ponto de vista da liderança real. Preste atenção nesse processo. Eu costumo fazer esse exercício de reflexão, porque para mim seria a única justificativa para essa coisa maluca que estamos vivendo: a enorme desproporção entre as pessoas fora do processo e o Estado brasileiro. Ficou de tal ordem que rompeu-se o pacto social do Brasil e foram cento e poucos anos para que isso acontecesse.
Refavela – Na sua opinião, essa exclusão não estava prevista no próprio pensamento abolicionista do século XIX?
José Luiz Penna – Penso que não. Hoje a gente tem notícia de que Joaquim Nabuco, Ruy Barbosa e outros, como José do Patrocínio, descendente de africanos nascido livre, e alguns ex-escravos importantes, como Luiz Gama, trabalharam contra a forma de libertação, que se acabou fazendo. Há alguns livros bastante reveladores sobre esse processo, como “Memórias de um Gato”, de Luiz Carlos Lisboa e “Um Defeito de Cor”, de Ana Maria Gonçalves, Recentemente li uma brochurazinha de um africano chamado Baquaqua, originalmente escrita em inglês. Ele foi escravizado em seu continente, trazido para o Nordeste brasileiro, onde trabalhou arduamente, fugiu e foi parar no EUA. Lá, até cursou universidade. É necessário construir um entendimento do século XIX. Sem desvendá-lo é impossível entender o Brasil. Naquele século que o País foi embotado pelo positivismo, entre outras experiências e pensamentos que exercem grande influência nos dias atuais. Penso que para a gente recuperar o Brasil de hoje, é preciso a participação majoritária da sociedade. Sem isso, nós vamos continuar vivendo essa loucura.
Refavela – Esta é sua motivação pessoal para apoiar a BienAfro?
José Luiz Penna – Sem dúvida. As manifestações culturais que estão por aí nucleadas, tanto as mais antigas quanto as mais novas, dos grupos que se manifestam através da cibernética, precisam de um ponto de encontro que, na minha visão, deve ser na Cultura. Entendo que esses pensamentos todos necessitam deste ponto de encontro para reagir ao imenso buraco que resultou de nossa perda de referencial.
Refavela – Entender o Brasil plural é fundamental para se entender a Cultura Brasileira?
José Luiz Penna – Mais que isso: ao contrário da visão hegemônica, de uma suposta homogeneidade cultural, entendemos que a diversidade é a verdadeira riqueza, o diferencial possível de nosso País. O mundo vai crescer, na observação de suas diferenças. Tentar fazer o contrário é uma burrice. Já dizia meu pai de santo, na Bahia, Seo Lolô, o maior mão-de-Ifá que já vi – da dinastia do Velho Ciriaco –. A viagem mais idiota é tentar fazer os cinco dedos da mão iguais. A diversidade é uma riqueza, a soma das diferenças é o que enriquece. É Isso que o fascismo não consegue compreender. Só o projeto fascista, em marcha, justifica essas transmissões de TV, em cadeia. Eu estava em Manacapuru, uma cidade do Amazonas. Cheguei cansado da viagem, subi a escada de um hotelzinho. Liguei a TV, como de costume, e entrei no banho. Olho pelo vitrô e vejo um revoar de araras, gaivotas, pura paz. Quando saio do banheiro, está passando na televisão o programa do Datena e ele berrando: “Atenção! Cuidado! Cuidado! Se protejam!”. Falava de uma perseguição a bandidos, na Zona Leste de São Paulo. Aí, fiquei imaginando a coitada de uma senhora idosa, recolhendo sua cadeirinha da calçada, com medo de uma bala perdida, em Manacapuru.
Refavela – É a pasteurização da cultura…
José Luiz Penna – Na verdade é um projeto: querem fazer daqui um Canadá. Se é que o Canadá é o que nos vendem, um país em tom pastel. Querem nos transformar numa tremenda mediocridade, desprezando toda a nossa mega diversidade. Hoje, depois de vocês, vou me encontrar com dois irmãos do Xingu. Temos uma irmandade braba. Nossa diversidade, as pessoas nem imaginam, atrai as maiores inteligências do mundo, que aqui vêm, pelo menos uma vez por ano, para entender como conseguimos conviver com esse universo tão plural. A distância entre um bósnio e um sérvio é menor do que a de um gaúcho e um cearense. Mas aqui, por exemplo, nos namoramos. Não nos matamos uns ao outros. Essa é que é a visão que interessa: a da Democracia.
Refavela – O que o Sr. diria para finalizar?
José Luiz Penna – São Paulo é o maior laboratório do Brasil, não pelo tamanho ou pela quantidade, mas pela pluralidade. Nas comemorações do Ano Novo Chinês, no Memorial da América Latina, lá estavam chineses, que aqui se estabeleceram, ombro a ombro com taiwaneses, seus inimigos mortais. Por outro lado, nosso povo está passando ao largo desse Estado mínimo, no qual não se reconhece. Essa coisa bonita chamada povo brasileiro não encontra ressonância na estrutura de poder. Porque ser brasileiro só acontece, pela TV e quando tem Copa do Mundo. Mas brasilidade é muito mais que isso. Se me perguntarem o que eu sou, lhes digo com sinceridade: sou um mulato claro e reconheço minha africanidade. O Brasil tem necessidade de reconhecer sua própria africanidade. Meu escritório fica na Av. Rebouças: engenheiro, mulato, baiano. Uma rua pra trás é a Theodoro Sampaio, engenheiro, mulato, baiano. Então, cadê esses caras e sua representatividade?