Mariângela Borba, jornalista redatora, revisora e especialista em Cultura Pernambucana. Secretária de comunicação na diretoria executiva do PV em Pernambuco e do Recife.
Mais uma vez, uma manchete ou capa de revista vira piada. A mais recente edição da Veja São Paulo, uma revista feita por sudestinos, na sua maioria, e que comemora os 467 anos da cidade, forçou demais a barra ao colocar em sua capa que São Paulo era a capital do Nordeste. Nunca que vão pensar sob a ótica Nordestina. Seria o mesmo que a carioca Fátima Bernardes se julgar da terrinha só porque além de namorar o pernambucano Túlio Gadelha, se vestiu de Papangu de Bezerros no carnaval que passou e arriscou até uns passinhos de frevo “nas Olinda” (gíria nossa).
Falhou Revista Veja! Não é assim que se entende o Brasil. Essa manchete mal feita apenas corroborou para escancarar esse preconceito velado que sempre existiu entre sudestinos e nordestinos (“é tudo Paraíba”, “cabeça chata”, “fala arrastado”). Parabéns por mais essa pérola em tempos de extremismos. Não somos e nem queremos viver numa República Separatista. Apenas queremos mais empatia e respeito, por favor! Já dizia o grande escritor e diplomata mineiro Guimarães Rosa: “uma coisa é pôr ideias arranjadas, outra é lidar com
país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias…
Tanta gente – dá susto de saber – e nenhum se sossega: todos
nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de
emprego, comida, saúde, riqueza, ser importante, querendo
chuva e negócios bons…”.
Um erro crasso! Muito longe do Nordeste querer São Paulo como capital. Capitais nordestinas (Recife , João Pessoa, Aracaju, Maceió, Natal, Fortaleza, Teresina e São Luís) têm muito mais beleza, riqueza, grandeza e História. Não há o que se invejar. O Nordeste é a região que possui o maior número de estados. A capacidade de resistência da gente nordestina vai além das definições literárias e científicas. Já provou Josué de Castro, importante médico, teórico, pensador e atvista político recifense, em seus livros Geografia e Geopolítica da Fome.
É certo que durante anos nordestinos migram para o Sudeste visando as sombrias oportunidades de trabalho atrelada à expectativa de uma vida financeira equilibrada. O saudoso ícone da música brasileira e autêntico representante da música popular, mestre Luiz “Lua” Gonzaga, também conhecido como Rei do Baião, tão bem versou as agruras de estar longe de casa em busca das promessas de melhoria de vida. Fruto da pujança cultural da gente do sertão, Lula Gonzaga soube traduzir para o cosmopolitismo sudestino e a partir daí ganhar o mundo.
Parafraseando Euclides da Cunha, numa de suas famosas frases em Os Sertões, onde ele diz que “o sertanejo é antes de tudo um forte”, tiramos uma licença poética para ir de encontro à Xenofobia praticada pela Veja São Paulo e dizemos que o Nordestino é antes de tudo um forte. No referido livro, o autor narra suas experiências na Guerra de Canudos, uma das inúmeras revoltas populares que sacudiram essa região desde o descobrimento do Brasil. São movimentos ocorridos na história do país que abalaram muitos dos governos e regimes das classes exploradoras brasileiras. Sem o povo desta terra, nenhuma das atuais riquezas do país teriam sido erguidas.
Por isso, é falácia a propaganda dos supostos modelos de “desenvolvimento” implementados, que, apesar de terem concedido direitos elementares, como o acesso à luz e a expansão precária do ensino, não alteraram estruturalmente a situação de região mais castigada do Brasil. Desde o período colonial foi implementado o modelo de plantation, marcado pelo latifúndio, monocultura, superexploração da mão-de-obra escrava e produção voltada para o mercado externo. Até hoje, a concentração de terras e de renda é marcante na região. Porém, longe de resignar-se passivamente, o povo nordestino protagonizou uma série de revoltas revolucionárias na história do Brasil. Desta forma, o que nos deveria vir a mente é “Lute como um nordestino”.
É importante destacar que, durante uma parte do período colonial, o Nordeste era a região mais rica do país, além de, a partir de 1549, ser também o centro político, abrigando em Salvador a primeira capital brasileira. A região foi, inclusive, palco de conflitos territoriais entre Portugal, França e Holanda. A partir do século XVIII, com a decadência do Ciclo do Açúcar, essa situação começou a mudar e a capital foi transferida para o Rio de Janeiro no ano de 1763.
A primeira grande revolta e a principal ameaça ao poder da metrópole foi o Quilombo dos Palmares, o mais extenso quilombo das Américas. Apesar de não haver informações precisas, o mais provável é que esta tenha começado a partir uma insurreição em um engenho, que deu origem ao quilombo na Serra da Barriga, na então capitania de Pernambuco.
Só em Pernambuco, houveram duas grandes revoltas de caráter republicano que abalaram a Monarquia, seja na figura de D. João VI ou de D. Pedro I. A primeira delas foi a Revolução Pernambucana em 1817, marcada pela presença de lideranças femininas no coração de um Nordeste patriarcal, como Bárbara de Alencar, Maria Teodora da Costa e Gertrudes Marques, sendo a primeira delas a primeira presa política do Brasil. Pouco depois, em 1824, estoura a Confederação do Equador. A revolta teve como epicentro também a província de Pernambuco, porém se alastrou para outras províncias. Seu estopim se deu contra o ato autoritário de D. Pedro I, que dissolveu a Assembleia Constituinte de 1823 e outorgou uma constituição altamente centralizadora. A nova revolta arrastou consigo muitos dos antigos revoltosos da Revolução Pernambucana de 1817 e foi alvo da maior repressão do Brasil Império, com 31 condenados à morte.
Influenciada pelos acontecimentos em Pernambuco, a Bahia também assistiu ao surgimento de revoltas de caráter independentista e republicano, protagonizadas sobretudo entre os estratos urbanos inferiores e médios.
Quando foi dado o Golpe Militar de 1964, a justificativa da ofensiva autoritária era a existência de um perigo comunista, mas o que não se sabe é que era justamente dos trabalhadores do campo nordestino que surgiram os piores pesadelos da burguesia brasileira. As Ligas Camponesas chegaram a organizar em suas fileiras 500 mil filiados, majoritariamente concentrados no Nordeste. Por exemplo, em 1963 existiam 64 ligas em Pernambuco, 15 na Paraíba, 12 no Maranhão, dez no Ceará e nove na Bahia. Os conflitos do começo da década anterior, como a “República de Tromba-Formoso”, em Goiás, que se declarava um Estado próprio operário e socialista.
Mais respeito, senhora Veja, por favor, com esse Nordeste que é conhecido hoje, mundialmente, por sua capacidade criativa e brilhantismo de ideias. A capital do Nordeste é aqui!