O acesso fluvial dos indígenas à cidade de Altamira e o Sistema de Transposição de Embarcações.
Os indígenas e as comunidades que vivem ao longo da Volta Grande do Xingu protestam com a falta de solução para o problema que a construção de Belo Monte causará ao acesso fluvial à Altamira. Esse é o Trecho da Vazão Reduzida (TVR), como ficou sendo chamado, porque o projeto prevê o desvio das águas do rio Xingu para alimentar o reservatório intermediário da casa de força principal da UHE Belo Monte.
Desviar as águas do rio Xingu durantes as obras de instalação de Belo Monte e depois, na fase de operação, inviabilizará definitivamente o direito de ir e vir das comunidades. O rio é a via que liga a Volta Grande ao resto do mundo. O rio é a via que dá vida à Volta Grande.
Estão previstas no projeto obras de desvio do rio (ensecadeiras) para construção da barragem principal no Pimental (ver mapa abaixo). É nesse período que o TVR ficará intransponível sem os canais naturais de navegação que permeiam os pedrais, mesmo durante os períodos de seca.
As comunidades e propriedades rurais localizadas entre a cachoeira do Jericoá e o distrito de Belo Monte, na Volta Grande, numa extensão de 100 quilômetros, querem garantias da manutenção da navegação e condições de escoamento da produção.
Até o momento não houve sinal do detalhamento de engenharia do Sistema de Transposição Provisório de Embarcações. Os engenheiros da Norte Energia estiveram nas aldeias para dar uma explicação técnica. Não convenceram. Acabaram por irritar ainda mais os indígenas. Os indígenas pediram que os técnicos desfrutassem mais alguns dias de sua hospitalidade, na aldeia Muratu, para tentar entender as propostas.
Já aborrecidos com o descumprimento das condicionantes, em especial com a questão da transposição das embarcações entre o barramento do rio Xingu, no sítio Pimental e no sítio Belo Monte, os indígenas da TI Paquiçamba não aceitaram as tais explicações técnicas. Uma vez que um trecho do rio será fechado, a Norte Energia tem que dar uma solução imediata para o livre acesso das comunidades ribeirinhas e dos indígenas, pelo rio Xingu, aos serviços essenciais de Altamira.
Em 27 de julho passado, o Ministério Público Federal (MPF) do Pará recomendou ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e à Fundação Nacional do Índio (Funai) providências urgentes para garantir a navegabilidade para as embarcações das comunidades na Volta Grande do rio Xingu e no rio Bacajá.
Belo Monte teria sido apenas um desenho mal concebido, se a Constituição Federal fosse obedecida. No entanto, o projeto inconstitucional saiu do papel e os problemas também. Foram ignoradas as condições impostas pela Nota Técnica (NT) 129/2009 da Agência Nacional de Águas (ANA), encaminhada ao Ibama, em 30 de setembro de 2009. Tanto a NT como uma cópia da comunicação interna da agência trataram de analisar os estudos de Belo Monte que tinham sido apresentados pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL).
O documento que consta do Volume XII, páginas 2.142 a 2.171, do processo de licenciamento de Belo Monte, e que embasou a decisão da Diretoria Colegiada da ANA, para emitir a Declaração de Reserva de Disponibilidade Hídrica (DRDH) (1), marcou o início de uma seqüência de fatos irregulares que culminou com o protesto das lideranças indígenas das etnias Juruna e Arara, na aldeia Muratu.
A NT da ANA, na página 2.168 do processo de licenciamento, trata de navegação e explica que o arranjo de Belo Monte não previa a transposição dos pedrais da Volta Grande. Admite, ainda, que o empreendimento não propiciará melhores condições de navegação em relação às atuais, já que o trecho não será inundado pelo reservatório.
A ANEEL também confirmou para a ANA que o principal impacto a ser considerado, ao se proporem vazões menores que as naturais nos períodos de estiagem, é quanto ao uso do rio como meio de transporte das comunidades ribeirinhas e indígenas. Então, onde está a solução para impedir esse impacto?
A ANA transcreveu essa informação dada pela ANEEL. A ANEEL informou à ANA a existência de navegação para transporte de cargas, pelo rio Bacajá, dos pequenos produtores de castanhas do Pará, pescado, hortigranjeiros, cacau, além de passageiros no trecho de 100 quilômetros do sítio Belo Monte até Altamira.
Explicou ainda que “interromper ou prejudicar muito essa navegação significa impedir as pessoas de se deslocarem para locais ao longo do próprio TVR, onde existem postos de saúde e escolas, como é o caso da Ilha da Fazenda e Ressaca, e mesmo para Altamira. É em Altamira que a população busca apoio para se tratar em casos mais sérios de doenças e, também, para onde levam os produtos de suas atividades econômicas para serem negociados. A diminuição das vazões provocará uma alteração dos percursos de navegação, sendo necessárias escolhas de locais mais profundos e a existência de um mecanismo de transposição de barcos para se chegar à Altamira.”
A NT da ANA, então, concluiu que na DRDH deveria constar uma exigência para manutenção das condições de navegação, adequadas ao porte da navegação existente na região, para todas as comunidades, inclusive os núcleos rurais, durante todo o período de implantação e operação do empreendimento. Mais ainda, recomendou que constasse como condicionante, para converter a DRDH em outorga, “a apresentação do Projeto Básico do mecanismo de transposição de barcos, mostrando a sua viabilidade técnica para a transposição de embarcações que operam na região da Volta Grande do Xingu (inclusive as embarcações de transporte regular de passageiros).”
Em 6 de outubro de 2009, apenas seis dias depois de emitida a nota técnica para o Ibama, a ANA expediu a Declaração de Reserva de Disponibilidade Hídrica (DRDH) para o aproveitamento hidrelétrico de Belo Monte, com condicionantes. O inciso V do Artigo 6º diz o seguinte:
Esta Declaração será transformada, automaticamente, pela ANA, em outorga de direito de uso de recursos hídricos para o aproveitamento hidrelétrico ao titular que receber da ANEEL a concessão ou a autorização para o uso do potencial de energia hidráulica, mediante apresentação do:
V – Projeto Básico do mecanismo de transposição de barcos da barragem do sítio Pimental, mostrando a sua viabilidade técnica para a transposição das embarcações que operam atualmente na região da Volta Grande do Xingu, inclusive as embarcações de transporte regular de passageiros; (grifo meu).
Nenhum prego poderia ter sido martelado naquela obra sem que estivesse aprovado o Projeto Básico do mecanismo de transposição para as comunidades da Volta Grande!
Não ficou nisso. Em 28 de fevereiro de 2011 essa DRDH foi transformada automaticamente em outorga de direito de uso de recursos hídricos em favor da Norte Energia S.A., para exploração do potencial de energia hidráulica. E no inciso IV, Artigo 3º, lá está ela novamente, a condicionante que deveria ter sido cumprida antes que a DRDH fosse transformada em outorga e antes que a obra começasse:
Art. 3º O outorgado deverá apresentar, nos prazos especificados;
IV. Projeto Executivo do mecanismo de transposição de barcos da barragem do sítio Pimental, mostrando a sua viabilidade técnica para a transposição das embarcações que operam atualmente na região, inclusive quanto à capacidade de carga do mecanismo, conforme levantamento definido no Item III, e compatível com as variações de NA (nível da água) dos futuros reservatórios, a ser apresentado à ANA até 30 de setembro de 2011;
Novamente a exigência sobre o Projeto Executivo do mecanismo de transposição das embarcações foi empurrado para a próxima fase. De 2009 passou para fevereiro de 2011, que passou para setembro de 2011, que passou para… Até o momento ela não foi cumprida, segundo a Norte Energia, em seu último relatório de julho de 2012. Prova disso é o recente protesto na aldeia Muratu.
Atendimento às condicionantes
O 2° relatório consolidado de andamento do PBA e do atendimento de condicionantes foi apresentado pela Norte Energia ao Ibama em 31 de julho de 2012. O capítulo 2 se refere ao Andamento do Projeto Básico Ambiental (PBA) e o item 14 diz respeito ao Plano de Gerenciamento Integrado da Volta Grande do Xingu onde constam:
14.2.1 Projeto de Monitoramento do Dispositivo de Transposição de Embarcações (página 1/9)
14.2.2 Projeto de Monitoramento da Navegabilidade e das Condições de
Escoamento da Produção (página 1/181)
O relatório nada mais é a repetição da mesma avaliação das características locais já na pauta do processo de licenciamento desde 2009. Pelo visto, a coisa anda tão a passos de cágado que, ainda em julho de 2012, essa gente estava avaliando a “funcionalidade do sistema a ser implantado” de estruturas que já deveriam estar funcionando!
Várias desculpas são usadas para tentar justificar o descaso com a questão, como “prazos tiveram que ser reformulados mediante a necessidade de revisão da proposição primeira para o sistema de transposição de embarcações, imposta por fatores técnicos e naturais da navegação no rio Xingu, como a existência de pedrais e rebojos nas proximidades do sistema e a engenharia naval frágil das embarcações regionais.” Nem dá para entender a natureza desse argumento.
É tanta informação truncada que parece mesmo uma forma de ganhar mais tempo e postergar algo que já devia ter sido resolvido no plano de projeto em 2009.
Conclusão
A Norte Energia criou um arcabouço de entraves como justificativas:
I) a primeira etapa de “Levantamento de Referência para o Projeto de Monitoramento das Condições de Navegabilidade e Escoamento Produção” foi realizada ainda no primeiro semestre de 2011;
II) a segunda etapa, da “Distribuição de informações” para detalhamento do Projeto Detalhado de Engenharia do Sistema de Transposição Provisório de Embarcações, foi apresentada ao IBAMA em setembro de 2011;
III) mas o sistema, que sofreu críticas das comunidades e revisões técnicas, foi considerado inoperante devido aos fatores naturais e à fragilidade das embarcações locais (?);
IV) teve que ser reformulado e novamente apresentado ao IBAMA e à FUNAI em 22 de junho de 2012, no seminário em Brasília;
V) foi protocolada no IBAMA, no dia 29 de junho de 2012, a versão final do Projeto Detalhado do Plano de Contingências, documento que elenca as ações e responsabilidades em casos de paralisação do sistema por motivos técnicos ou ambientais conforme CE 307/2012-DS.
Passados três anos das exigências feitas pela ANA como condições para conceder a outorga ao empreendedor, não se apresentou ou comprovou ser possível manter as rotinas de navegação das comunidades no rio Xingu. Seja para escoamento da produção, seja para acesso aos serviços de saúde de Altamira, seja para simples deslocamento.
Para encerrar, faço referência ao Parecer nº 96/2012, do Ibama, de 14 de agosto último, que analisou a condicionante 2.6 da Licença de Instalação, sobre o detalhamento do sistema de transposição de embarcações a ser implantado no sítio Pimental. O parecer tomou como base informações, vistorias e uma visita feita ao modelo de Belo Monte construído em Curitiba, Paraná.
As conclusões informam que apesar de ter havido uma evolução no projeto do sistema apresentado no PBA, há ainda aspectos que precisam ser elucidados. Resumindo, o projeto do sistema de transposição de embarcações ainda não está concluído para implantação.
O projeto de Belo Monte tem irregularidades de sobra para voltar ao papel definitivamente e, junto com ele, os transtornos.
Nota:
1) Antes de um leilão para concessão do uso do potencial de energia hidrelétrica, a ANEEL deve obter a Declaração de Reserva de Disponibilidade Hídrica (DRDH) junto ao órgão gestor de recursos hídricos que, no caso de Belo Monte, é a ANA. Depois da licitação a DRDH é convertida automaticamente, pela ANA, em outorga para o consórcio vencedor.
* Telma Monteiro é ativista socioambiental, pesquisadora, editora do blog http://www.telmadmonteiro.blogspot.com.br, especializado em projetos infraestruturais na Amazônia. É também pedagoga e publica há anos artigos críticos ao modelo de desenvolvimento adotado pelo Brasil.
Agência Envolverde.
Publicado originalmente no site Correio da Cidadania.