A questionável alegação das montadoras aponta como motivos prejuízos econômicos causados pela covid-19 e consequente falta de recursos para viabilizar as medidas
Felizmente temos exceções, como o Programa de Controle de Poluição Veicular (Proconve), estabelecido por uma das primeiras resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) e reforçado por legislação federal. Com esse marco regulatório, há mais de três décadas o Brasil passou a exigir das montadoras veículos com menor emissão de poluentes, e da Petrobras, combustíveis mais limpos.
As etapas do Proconve são objeto de longas e exaustivas negociações no Conama, envolvendo governo, sociedade civil e indústria. Não se trata de algo imposto monocraticamente de cima para baixo por decisão do Executivo. Infelizmente, mesmo estando dentro desse processo participativo e democrático, muitos de seus integrantes tentam fugir das obrigações.
É o que se vê desde o início do ano por parte da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). A representante das montadoras vem pressionando o governo para adiar, por três anos, a implantação das próximas etapas do Proconve e de normas adicionais de segurança veicular. São aspectos definidos desde 2018, previstos para vigorar em 2022.
A questionável alegação das montadoras aponta como motivos prejuízos econômicos causados pela covid-19 e consequente falta de recursos para viabilizar as medidas. A pressão inclui ameaças de fechamento de fábricas, demissão de funcionários e redução permanente da indústria automotiva nacional. É a velha tática do bode na sala. Pede-se adiamento por três anos para conseguir dois ou um, num gesto de aparente boa vontade.
Por seu lado, são ignorados prejuízos tangíveis e severos em termos de mortes prematuras, agravamento de doenças respiratórias e aumento acentuado nos custos da saúde pública. São impactos amplamente comprovados em estudos das mais importantes entidades científicas mundiais. Do lado da segurança, dados do Ministério da Saúde mostram que em 2019, a cada hora, morreram cinco pessoas no país em acidentes de trânsito, sendo cerca de 60% vítimas com idade entre 15 e 39 anos. É a inominável socialização dos prejuízos.
Não é a primeira vez que as montadoras demonstram que lições do passado não foram bem compreendidas. Em 2008 e 2009, Petrobras e Anfavea se recusaram a cumprir uma etapa do Proconve para a melhoria da qualidade do diesel. Sempre vale a pena lembrar que o “representante” da estatal nesse debate era Paulo Roberto da Costa, notório personagem do Petrolão.
A resposta ao malfeito se deu com uma ação judicial movida pelo governo paulista. A ação foi encampada pelo Ministério Público Federal, gerando acordo judicial com antecipação de etapas do Proconve e uma série de medidas compensatórias, executadas pela Petrobras e as montadoras.
Mostrando que o descaso também é governamental, a criação do Proconve definiu a necessidade de programas de inspeção e manutenção da frota em uso, a exemplo do que existia em outros países. Esse item foi negligenciado pelos governos e, diga-se, em caráter suprapartidário, ainda que a poluição do ar tenha se transformado em uma das principais causas de óbitos em todo o mundo.
O lobby para postergar as próximas fases do Proconve vem das mesmas montadoras que em seus relatórios anuais afirmam ter compromissos com a sustentabilidade, mas que praticaram fraudes mascarando o desempenho ambiental dos produtos — no Brasil em 1995 e mais recentemente em outros países, no caso conhecido como Dieselgate. Agora, seus representantes perambulam como vampiros pelos corredores do Planalto em busca de prazos maiores para retardar o Proconve e as normas de segurança veicular, esquecendo as benesses recebidas do setor público ao longo de décadas.
O fato é que, sempre que lhes convêm, as empresas cumprem as ameaças independentemente do programa de interesse social e ambiental que estiver em jogo. Desviam a atenção, isso sim, da discussão bloqueada no Conama desde 2018 sobre regras contra fraudes, para evitar que malfeitos praticados fora do Brasil possam ser replicados por aqui. Ou será que alguém acredita que estamos livres dessas práticas pela simples declaração de amor à sustentabilidade, apresentada em cores vivas e textos bem diagramados?
*Eduardo Jorge é ex-deputado federal, foi secretário do Verde e do Meio Ambiente de São Paulo
* Fábio Feldman é ambientalista, consultor e foi deputado federal
*Maria Stella Gregori é advogada, especialista em direito do consumidor
* Maurício Brusadim foi secretário estadual do Meio ambiente
Fonte: Correio Braziliense